Um país transformado em uma prisão para deportados dos EUA. Outro chantageado para romper compromissos com a China e um governo pressionado a fechar um pacto de defesa para assegurar a operação de uma petroleira americana. Isso sem contar com a decisão de rebatizar o Golfo do México, nome que designa uma região há mais de 300 anos.
Para a Casa Branca, desmontar a ofensiva chinesa no mundo passa em primeiro lugar por retomar sua influência na América Latina.
Não por acaso, num gesto pouco comum na diplomacia americana, o secretário de Estado, Marco Rubio, fez duas viagens para a região latino-americana em apenas dois meses no cargo. Filho de cubanos exilados nos EUA, Rubio admitiu que nem sempre os americanos tiveram o que oferecer para a região. Mas prometeu que, desta vez, será diferente.
A questão da falta de uma estratégia americana para a América Latina foi alvo de uma conversa de enviados do Itamaraty aos EUA, antes mesmo da eleição de Donald Trump. Os diplomatas brasileiros ouviram da equipe do republicano que a meta era impedir a expansão chinesa na região. Mas tiveram de reconhecer que o avanço de Pequim ocorre, acima de tudo, por conta da ausência de uma agenda positiva por parte dos americanos.
Trump, ao assumir, decidiu que era o momento justamente de adotar essa estratégia, ainda que com variações importantes. Quem estiver ao lado dos EUA terá algum benefício. Mas aqueles que optarem por não se alinhar, principalmente os países menores, sofrerão consequências.
EUA alinhados com Argentina, Paraguai e outros
Em alguns casos, o realinhamento da América Latina deu resultados pontuais. Com a Argentina de Javier Milei, conversas foram iniciadas para um acordo comercial, o que abalaria o Mercosul, além de um diálogo sobre a cooperação espacial.
Com o Paraguai, o governo em Assunção não disfarçou a satisfação quando foi citado como “exemplo” por parte da Casa Branca ao não ceder às pressões da China e manter sua relação diplomática com Taiwan.
“Acho que é importante reconhecer os aliados na região, como o Paraguai, que não cederam” para a China, disse Rubio, ao ser alvo de questionamentos em sua sabatina no Senado americano.
Em sua primeira viagem para a América Central, semanas depois de tomar posse, Rubio adotou o mesmo tom com a Costa Rica diante da disposição do governo local em frear a influência da China na região.
Num comunicado, o chanceler do país centro-americano, Arnoldo André, ressaltou o status da Costa Rica como um importante aliado dos EUA, afirmando: “Os Estados Unidos consideram a Costa Rica uma nação amiga e um parceiro estratégico”. Ele acrescentou que o país não prevê nenhuma consequência negativa do governo Trump.
A declaração não vem sem um cheque. A Costa Rica quer se posicionar como um centro de semicondutores e um elo confiável na cadeia de suprimentos global. Hoje, mais de 400 empresas internacionais operam no país, sendo que cerca de 70% são provenientes dos Estados Unidos.
O país também adotou uma lei que limita os fornecedores de equipamentos de telecomunicações a empresas sediadas em nações signatárias da Convenção de Budapeste sobre Crimes Cibernéticos. Essa medida efetivamente impede a participação de empresas chinesas — uma decisão que está alinhada com os esforços de Trump para restringir os principais investimentos chineses na região e foi bem recebida pelo novo governo dos EUA
Na parada na Guatemala, Rubio conseguiu convencer o governo local a ampliar sua capacidade de receber não apenas guatemaltecos deportados dos EUA, mas também migrantes de outros países que serão repatriados para seus locais de origem. “No entanto, a resposta permanente à imigração é trazer desenvolvimento para que ninguém tenha que deixar o país”, disse o presidente Bernardo Arévalo.
País prisão a criminosos
Mas nada se compara ao acordo obtido por Trump com El Salvador. O presidente Nayib Bukele aceitou transformar suas prisões em destinos para criminosos que o americano não queira nos EUA.
Na semana passada, a chefe de segurança interna dos EUA, Kristi Noem, visitou a mega-prisão em El Salvador para onde centenas de migrantes venezuelanos foram deportados. Para envia-los para o país centro-americano, Trump invocou uma legislação dos EUA raramente usada em tempos de guerra para contornar os procedimentos legais de deportação. Washington ainda pagou ao governo Bukele cerca de US$ 6 milhões por receber os prisioneiros.
Num vídeo gravado diante de uma cela com detentos que foram despidos até a cintura, Kristi Noem gravou um alerta. “Não venham para o nosso país ilegalmente. Vocês serão removidos e processados”, disse ela no Centro de Confinamento de Terrorismo, a prisão de segurança máxima. “Saibam que esta instalação é uma das ferramentas do nosso kit que usaremos se vocês cometerem crimes contra o povo americano”, disse.
Durante a viagem, Noem assinou um acordo de compartilhamento de informações com o ministro da Justiça e Segurança de El Salvador, Gustavo Villatoro. “Esse acordo fortalece o compromisso de ambos os países na luta contra o crime transnacional”, disse a embaixada americana, sem explicar o que envolveria a troca.
O grupo de direitos humanos Anistia Internacional disse que a expulsão em massa “representa não apenas um flagrante desrespeito às obrigações de direitos humanos dos Estados Unidos, mas também um passo perigoso em direção a práticas autoritárias”.
O grupo disse que havia “uma conexão clara e preocupante” entre os métodos de Bukele e as ações recentes dos EUA, já que “ambos se baseiam na falta de um processo justo e na criminalização de indivíduos com base em critérios discriminatórios”.
Proteção para negócios da Exxon
Na mesma linha estratégica, o governo dos EUA assinou com a Guiana nesta semana um acordo de defesa. A meta é a de mandar um recado claro para o governo de Nicolas Maduro de que suas reivindicações pelo territórios repletos de petróleo do país vizinho não serão aceitos.
Rubio fez um alerta claro de que os americanos irão reagir caso Caracas mantenha qualquer tipo de enfrentamento, principalmente numa reunião onde a multinacional Exxon conta com os direitos de exploração.
O foco sobre a segurança e os ataques contra Venezuela, Cuba e Nicarágua não são apenas questões ideológicas. A principal preocupação se refere à transformação desses locais em bases para os interesses chineses na região.
A China também esteve no centro do debate com a primeira-ministra Mia Mottley, de Barbados. Mottley é atualmente presidente da CARICOM, e os líderes que não foram convidados a participar da visita de Rubio pediram que ela manifestasse sua preocupação diante da proposta de tarifa que Trump está considerando impor aos navios fabricados na China que atracam nos portos dos EUA. A taxa multimilionária aumentaria a inflação na região, e os líderes querem uma isenção para o Caribe.
Em sua parada na Jamaica, o foco de Rubio foi retomar a relação com o país. A ilha, que já esteve à beira da falência, é agora considerada como uma localização estratégica, próxima às principais rotas de navegação marítima.
Os americanos não conseguiram convencer o país a abandonar o acordo com Cuba para os serviços de médicos enviados por Havana. Mas o alerta ficou estabelecido.
Durante a viagem, Rubio esteve também com os líderes de Trinidad e Tobago e do Haiti. Com toda a região, a situação do crime organizado e da imigração estiveram entre as prioridades nas conversas.
Após pressão, Panamá rompe contratos com China
Mas as viagens não foram marcadas apenas por gestos de aproximação. Ao passar pelo Panamá, Rubio coagiu o governo local a romper seus acordos com a China, sob o risco de ver uma ofensiva até mesmo militar para retomar o canal que liga os dois oceanos.
Assim, o Panamá, que foi o primeiro país latino-americano a aderir em 2017 à Iniciativa Cinturão e Rota (BRI) da China, foi também o primeiro a deixa-lo. A esperança de Trump é de que haja um efeito dominó e que outros países da região que aderiram ao programa de infraestrutura da China também sigam o mesmo caminho.
Segundo o Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, a ruptura foi real no caso do Panamá.
“Em 4 de março, a BlackRock, Inc., uma das maiores empresas de gestão de ativos dos EUA, assinou um memorando de entendimento com a CK Hutchison Holdings Limited, solidificando um acordo para comprar 90% da Panama Ports Company, que opera os portos de Balboa e Cristóbal no Panamá”, explicou.
“Esses portos têm estado no epicentro das tensões entre os EUA e o Panamá, onde Washington alegou que a empresa sediada em Hong Kong poderia fornecer uma porta de entrada pela qual a República Popular da China (RPC) poderia explorar os portos ao longo do Canal do Panamá em detrimento dos interesses estratégicos dos EUA”, disse.
“Por enquanto, o acordo acalma alguns desses temores, mas seu significado também vai muito além do Panamá e traz implicações importantes para o futuro da concorrência entre os EUA e a China nas Américas como um todo.
Em setembro de 2024, o Comitê de Segurança Interna da Câmara divulgou um relatório que mostrava que os guindastes portuários navio-terra fabricados pela Shanghai Zhenhua Heavy Industries Company Limited (ZPMC) criam vulnerabilidades significativas de segurança cibernética e segurança nacional para os Estados Unidos e seus aliados.
O centro destaca que, em 2023, seis desses guindastes foram adquiridos para o porto de Balboa e outros sete foram comprados para Cristóbal. A empresa também pressionou os operadores para obter acesso remoto a seus guindastes, aparentemente para fins de solução de problemas técnicos.
Segundo o levantamento, o Terminal Internacional de Manzanillo, o maior porto individual ao longo da costa caribenha do Panamá, é de propriedade da empresa Carrix, Inc., com sede em Seattle, mas recebeu seis novos guindastes da ZPMC em outubro de 2024.
“Enquanto isso, o projeto do Terminal de Contêineres de Colón, agora cancelado, liderado pelo Landbridge Group da China, deixou em seu rastro 300 câmeras de segurança doadas pela Huawei e pela ZTE, destinadas a fazer parte de um projeto complementar de “cidade segura”, completou.
Bullying como arma
O Panamá não foi o único a sofrer a ameaça. Com o México, Trump ensaiou a imposição de tarifas que teriam abalado a economia local, antes de admitir uma negociação. O governo do país latino-americano teve de aceitar a deportação de seus nacionais, colocar 10 mil soldados na fronteira e se comprometeu em lutar contra o crime organizado.
Uma vez mais, o impacto foi sentido na China, com empresas que planejavam ampliar investimentos no parceiro americano adiando anúncios.
O bullying também foi a “estratégia negociadora” usada por Trump com o governo da Colômbia. Quando ainda em fevereiro, após o presidente Gustavo Petro anunciar que não aceitaria as condições para receber os deportados, a Casa Branca lançou uma ofensiva comercial, financeira e diplomática contra Bogotá, estrangulando qualquer chance de uma resistência.
Indignado, Petro escreveu uma carta que certamente entrará na história moderna da relação entre a América Latina e os EUA.
“Você pode me matar, mas eu sobreviverei na minha cidade que é anterior à sua, nas Américas. Somos pessoas dos ventos, das montanhas, do Mar do Caribe e da liberdade”, escreveu Gustavo Petro.
Ele, porém, também teve de ceder.
Uol