As tarifas sobre importações impostas pelos Estados Unidos, anunciadas pelo presidente Donald Trump, evidenciaram uma crise na Organização Mundial do Comércio (OMC). Especialistas ouvidos pelo Correio avaliam que o órgão, responsável por regular o comércio internacional, pode se tornar irrelevante politicamente, caso grandes potências passem a agir sistematicamente fora de suas regras.
A organização administra, agora, 74% do comércio global, abaixo dos cerca de 80% registrados no início do ano, devido às recentes tarifas. Sem a confiança dos membros, seu papel como árbitro e estabilizador de disputas comerciais pode se tornar praticamente nulo. Em comunicado, a diretora-geral da OMC, Ngozi Okonjo-Iweala, afirmou que a guerra tarifária pode levar a uma contração de cerca de 1% nos volumes globais de comércio de mercadorias em 2025. Ela alertou que a taxação tem o potencial de criar efeitos significativos de desvio de comércio.
No texto, Okonjo-Iweala destacou que o sistema multilateral de comércio enfrenta grandes desafios diante das crescentes tensões protecionistas. Para lidar com medidas unilaterais como as adotadas pelos EUA, a OMC possui mecanismos específicos que podem ser acionados. No entanto, a eficácia dessas ferramentas está atualmente comprometida pela paralisação do Órgão de Apelação da entidade, bloqueado desde 2019 devido à recusa do governo norte-americano em nomear novos juízes.
Para Lívio Ribeiro, sócio da BRCG Consultoria e pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV-Ibre), a OMC não funciona mais na atualidade. “Tudo que tem sido feito em termos de agenda comercial dos Estados Unidos vai contra os princípios básicos de operação do organismo. Se o grande consumidor do mundo não respeita as regras, na prática, o organismo não serve para muita coisa”, afirmou.
Segundo ele, mesmo que não haja um fim formal da organização, “nesse momento ela está acéfala e está completamente sem capacidade nenhuma de preencher o seu papel”. “É seguro dizer que ela acabou no sentido de que vai ser dissolvida. Em termos práticos, hoje ela é muito mais uma sigla e um fórum para discussões do que deveria ter sido feito do que efetivamente um ambiente no qual os países discutem seus acordos comerciais e suas relações de troca. A OMC está hibernando, vamos chamar assim”, avaliou.
Diversos pilares do comércio internacional estão sendo questionados com a taxação, vista como a maior mudança no mercado global em 100 anos. Entre eles, o multilateralismo é o mais atingido. “Eu acredito que nós estamos vendo o fim do próprio multilateralismo, do sistema multilateral de comércio e das instituições que fazem parte disso, como a própria OMC”, disse o economista Roberto Uebel, professor do curso de relações internacionais da ESPM.
Ele lembrou que a organização havia sido esvaziada no primeiro governo Trump e que o governo de Joe Biden também não indicou representantes para o sistema de solução de controvérsias. Segundo o economista, isso enfraquece a capacidade da organização de impor suas decisões, mesmo quando um painel conclui que determinadas tarifas são ilegais. “Hoje a OMC não tem a mínima capacidade de influência nas decisões do governo dos Estados Unidos, do presidente Trump”, enfatizou.
Nesse cenário, disputas comerciais podem ficar travadas indefinidamente, aumentando as tensões entre os países. “Eu vejo que o órgão perde a sua relevância. Não é que seja o fim de fato da organização, mas a sua relevância para a solução de controvérsias comerciais, de controle de barreiras tarifárias, isso me parece ter ficado no passado”, completou.
A China informou que registrou uma queixa na OMC em resposta às novas tarifas dos Estados Unidos. O Ministério do Comércio da do país disse, em nota, que as novas tarifas dos EUA são “típica intimidação unilateral” que violam as regras da organização.
Para as importações chinesas, Trump anunciou a imposição de uma tarifa adicional de 34%, que se soma a taxas anteriores que os EUA impuseram, elevando o total de tarifas que esses produtos enfrentarão no mercado americano para cerca de 70%, de acordo com economistas. Em resposta, o país anunciou a retaliação com a adoção de tarifas de 34% sobre produtos dos EUA. A decisão sinaliza que o conflito comercial pode ultrapassar os limites da mediação da OMC, exacerbando a instabilidade econômica global.
Isolamento
O economista Otto Nogami, professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), alerta que a taxação de Trump pode ser prejudicial para a própria economia norte-americana. “A curto prazo, podem proteger setores locais. Mas a médio e longo prazo, prejudicam consumidores e exportadores”, disse.
“Aumentam o custo de importações, ou seja, a inflação, reduzem a competitividade de empresas que dependem de insumos estrangeiros, e provocam retaliações, prejudicando exportações dos EUA. Além disso, reduzem investimentos externos e ampliam incertezas”, completou.
Os EUA vão cobrar tarifa de 10% sobre as exportações brasileiras. Essa é a menor porcentagem imposta pelo governo americano. Em sua avaliação, uma retaliação do Brasil “é compreensível, mas precisa ser estratégica”. “Retaliar diretamente com tarifas pode ter efeito simbólico, mas pouca eficácia contra os EUA”, destacou Nogami.
Para o especialista, o melhor caminho seria acionar a OMC, ainda que enfraquecida, e buscar alianças. “Com a União Europeia, China e BRICS, ou até mesmo com o Japão, e reforçar acordos bilaterais alternativos. O risco da retaliação direta é entrar em uma escalada que prejudique setores exportadores brasileiros”, considerou.
Reciprocidade
A economista Carla Beni, professora de MBAs do FGV, chama atenção para um movimento inédito de união entre países com histórico de conflito em resposta à taxação de Trump, o que pode acabar isolando a economia norte-americana. “Tivemos nesta última semana um acordo impensável historicamente. China, Japão e Coreia do Sul vão juntos fazer uma retaliação em relação aos Estados Unidos. O Canadá, que estava totalmente separado, agora está unido. O próprio Congresso brasileiro aprovou pela primeira vez um projeto com unanimidade para responder a essas tarifas”, listou.
O Legislativo aprovou às pressas, na semana passada, um projeto de lei que autoriza o governo brasileiro a adotar medidas de retaliação contra barreiras comerciais impostas por outros países ou blocos econômicos. Originalmente, o PL alterava a Política Nacional sobre Mudança do Clima e tratava de equiparar exigências de controle ambiental, com foco em restrições impostas pela União Europeia contra produtos do agronegócio brasileiro.
Com a adoção da política comercial imposta por Trump, o texto foi adaptado para autorizar retaliações contra países ou blocos que adotem qualquer tipo de barreira contra produtos brasileiros. “O Trump está conseguindo feitos impressionantes. Essa lei também é um reflexo, digamos assim, uma resposta da sociedade diante da belicosidade e da grosseria do governo americano”, destacou.
A lei foi vista como um gesto político legítimo, mas de eficácia limitada. Beni avalia que o projeto aprovado, por si só, não tem nenhum efeito prático de retaliação, apenas dará mais autonomia e segurança jurídica para qualquer eventual ação do governo brasileiro em resposta. “Se interessar ao Brasil e ele quiser aumentar a tarifa de importação para alguns itens específicos, ele já tem, digamos assim, o aval do poder Legislativo. É apenas isso. Não significa que você vai implementar”, explicou.
“Eu acho que sob a ótica da soberania ele foi importante, politicamente ele é importante, mas é apenas uma permissão. Se isso vai ser implementado automaticamente ou não, não é o caso”, acrescentou a economista, que acredita que uma retaliação imediata do Brasil seria uma resposta política, mas não é a melhor no momento.
“Não podemos esquecer que o Trump já voltou muito atrás das decisões dele. Ele faz anúncios muito midiáticos e depois, por baixo, você tem cotas, você tem tarifas diferentes para outros países. A gente precisa ter um tempo, um tempo de maturação. Essa é uma decisão mais diplomática a ser feita do que propriamente política”, ponderou.
A medida aumenta a incerteza a respeito dos rumos da economia global e especialmente do Brasil, que tem os EUA como seu segundo maior parceiro comercial, mas pode render um efeito positivo para o bolso do brasileiro com a desaceleração dos preços. Pela lógica, a tributação extra pressionaria a inflação, especialmente via importação de insumos e alimentos.
Produtos brasileiros taxados nos EUA podem perder competitividade e a menor exportação e queda de receita externa podem levar à depreciação do real e o encarecimento das importações. Isso encarece insumos industriais e agrícolas, elevando o custo de produção doméstico.
Entretanto, o cenário abre caminho para reduzir o ritmo da inflação brasileira, com o aumento da oferta interna e global, pela maior disponibilidade de diversos produtos taxados pelos Estados Unidos. “Se a gente vai exportar menos, talvez a gente tenha uma maior oferta aqui dentro e possa até melhorar aqui internamente os preços. Então, não é motivo agora para pânico nenhum para o brasileiro normal com a sua vida do dia a dia”, avaliou Carla Beni.
Correio Braziliense