A expectativa ao longo do dia de ontem sobre o pacote de medidas de ajuste fiscal levou o dólar ao maior valor nominal de fechamento desde a implementação do Plano Real, em 1994. A moeda americana subiu 1,80%, a R$ 5,9124.
Já o Ibovespa, principal índice da Bolsa brasileira, a B3, recuou 1,73%, aos 127.669 pontos, influenciado ainda pela forte alta dos juros futuros — contratos que mostram a projeção do mercado para o valor das taxas de juros à frente.
O anúncio foi feito pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em pronunciamento nacional às 20h30, com os mercados já fechados, mas o vazamento de informações ao longo do dia não agradaram aos investidores.
Analistas explicam que a notícia de que o pacote incluiria a isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil por mês levou desconfiança ao mercado sobre a fonte de recursos para custear esse benefício, o que provocou uma corrida dos investidores para o dólar. Na máxima do dia, o dólar chegou a ser cotado a R$ 5,9288.
‘Dia da marmota’
Diante da volatilidade, a Secretaria do Tesouro Nacional interrompeu a negociação dos títulos do Tesouro Direto por alguns minutos na tarde de ontem. O título IPCA+ com vencimento para 2029 superou os 7% de pagamento, no maior patamar do ano.
Pela manhã, o banco americano JPMorgan alterou a recomendação para as ações brasileiras de “compra” para “neutro”. Segundo o banco, os papéis vivem um eterno “dia da marmota” por conta da indefinição sobre o corte de gastos do governo e do impacto na trajetória da dívida em relação ao PIB. É uma referência ao filme homônimo, em que o personagem central vive o mesmo dia repetidas vezes.
Veja a seguir a avaliação de três economistas que observam as contas públicas sobre o pacote
Tony Volpon: ‘Reforça impressão de equipe econômica isolada’
Para Tony Volpon, ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central, a desconfiança do mercado sobre o real compromisso do governo com o ajuste fiscal — devido à demora no anúncio das medidas — se somou à apreensão com a proposta de isenção no IR, levando o dólar a um patamar recorde.
— Ter incluído a questão da isenção reforça muito a impressão de que, na verdade, você tem uma equipe econômica isolada, que o Haddad não conseguiu convencer o Lula de que isso (os ajustes fiscais) é uma coisa necessária, mas também positiva. E enfraquece muito a discussão política de aprovação das medidas no Congresso — ressalta.
Para o economista, o fato de a moeda americana ter alcançado um patamar tão alto antes do anúncio do pacote reforça a expectativa de que possíveis efeitos positivos das medidas no dólar podem ser anulados.
Segundo Volpon, o Banco Central deve continuar elevando a Selic nas próximas reuniões, mesmo com as medidas anunciadas ontem pelo governo. Ele avalia que os efeitos na inflação da alta do dólar, do aquecimento da economia — acrescido dos gastos fiscais — e da desancoragem das expectativas não estão sendo devidamente tratados:
— Isso deixa o Banco Central numa sinuca de bico, onde ou ele aumenta muito a taxa de juros ou perde a credibilidade.
Zeina Latif: ‘Prevaleceu a preocupação com a política’
Para a economista, consultora e colunista do GLOBO Zeina Latif, as medidas anunciadas pelo governo são um “caminho”, mas ela pondera que anúncio foi vago e prevê que volatilidade no mercado de câmbio vai continuar.
Sócia da Gibraltar Consulting, ela avalia o pacote como insuficiente para dar o alívio necessário às incertezas e tensões do mercado financeiro sobre a sustentabilidade das contas públicas. Ela aponta, por exemplo, a questão do reajuste do salário mínimo, que poderia ser menor.
— Claro que é um caminho, mas não é suficiente. O anúncio foi muito vago. Já haviam sido ventiladas coisas na direção correta, mesmo que tímidas. Como no caso do abono salarial, que colocaram (o teto) em um salário mínimo e meio. Poderia ser mais ambicioso. Não sabemos as medidas em relação aos militares, mas é importante iniciar a discussão. Também tem a política de ajuste de salário mínimo, que deve ficar no teto do arcabouço de 2,5%. Acho que deveria ser mais ambicioso, uma correção menor. É um salário mínimo que não está defasado — avaliou.
O custo político calculado pelo governo pode ter pesado nas decisões após semanas de reuniões entre o presidente Lula e a equipe econômica liderada por Fernando Haddad.
— É inevitável a leitura de que prevaleceu a preocupação com a política, o que não deixa de ser compreensível, porque mexer nesses temas não é fácil. Mas as coisas não podem ficar descoladas da técnica, em um quadro em que a credibilidade do lado fiscal está absolutamente abalada.
Apesar de o dólar ter atingido ontem seu maior patamar histórico, numa evidência da desvalorização do real, Zeina acredita que o mercado financeiro continuará com dificuldades de digerir a estratégia fiscal do governo:
— Sem dúvida (continuará a volatilidade), porque se esperava algo mais ambicioso. E não é só volatilidade. O que vemos na moeda hoje é mudança de patamar. A gente vê o mercado de câmbio cada vez mais rígido. Tem todos os sinais da macroeconomia e preços de ativos que demandam postura firme do governo. (…) O contexto é de inflação desconfortável, e o comportamento do dólar podendo piorar essa dinâmica.
Felipe Salto: ‘Medidas positivas, mas insuficientes’
Especialista em contas públicas, o sócio e economista-chefe da Warren Investimentos, Felipe Salto, avalia que anúncio da isenção do IR ficou como “contraponto” ao pacote e “maculou” um anúncio que deveria ser de corte de despesas, gerando a reação negativa do mercado e a consequente fuga para o dólar, desvalorizando o real.
Para o economista, que dirigiu a Instituição Financeira Independente (IFI) e foi secretário de Fazenda do Estado de São Paulo, ainda falta muito para o governo restaurar a credibilidade de sua política fiscal, E arrisca dizer que o governo pode ter perdido uma “oportunidade de ouro” de mostrar um compromisso mais efetivo com a estabilização da relação dívida/PIB.
— As medidas são positivas, mas insuficientes para recobrar a credibilidade na política fiscal e alcançar as condições de sustentabilidade da dívida/PIB. Além disso, a introdução da mudança na faixa de isenção do Imposto de Renda adiciona incertezas e pode representar custos, a depender da compensação — afirmou, indicando esse ponto como a principal razão para a escalada do dólar. — Essa medida deveria ser discutida no âmbito de uma reforma da tributação da renda. E não colocada como se fosse uma espécie de contraponto ao próprio pacote de ajuste.
Salto questiona a previsão de Haddad de economia de R$ 70 bilhões em dois anos:
— O valor é baixo para dois anos, e mesmo assim contempla um risco grande. Falta detalhamento das ações, além de medidas com maior fôlego para conter as despesas de 2025 em diante.
Para o economista, a demora do governo para apresentar o pacote também contribuiu para a avaliação negativa dos agentes no mercado financeiro:
— O governo criou uma expectativa de que o pacote seria suficiente para ajustar as contas às regras do novo arcabouço fiscal. Ocorre que isso não está garantido. É um pacote insuficiente e ainda acompanhado de medida tributária inesperada, ao menos para este momento.
O Globo