Se estivesse vivo, Márcio Gasparin da Silva, torcedor do São Paulo, seria um homem já na fase da maturidade, com seus 43 anos. Mas ele não teve a chance de fazer faculdade, construir uma carreira, constituir família… ou tomar um caminho totalmente diferente desses, se quisesse. Isso porque morreu adolescente, aos 16 anos, assassinado com uma paulada na parte de trás da cabeça.
Márcio estava no meio de uma batalha campal que se formou na partida entre seu time e o do Palmeiras pela final da Supercopa de Juniores de 1995. Os palmeirenses ficaram com o título da competição, e seus torcedores invadiram o gramado do Estádio do Pacaembu para festejar. Mas não só: como é tradição no futebol, começaram a provocar a torcida rival.
Na maioria das vezes, isso não passa dos xingamentos e gestos que nossas mães desaprovam. Só que não foi assim nesse dia: os são-paulinos romperam o alambrado que os separava do campo, e começou um quebra-pau sem limites. 102 pessoas ficaram feridas entre apoiadores dos dois times, e Gasparin morreu. A violência generalizada envolveu pedaços de madeira, pedras e até bandeiras das torcidas, cujos mastros eram usados como lanças.
A resposta do poder público veio no ano seguinte, punindo, de certa forma, tanto os torcedores violentos quanto aqueles que só querem assistir a um bom jogo (de vez em quando, com seus filhos pequenos): a lei estadual 9.470, sancionada pelo então governador Mário Covas, de dezembro de 1996, proibiu o uso de bandeiras com mastros nas partidas de futebol em São Paulo. Uma decisão que não foi seguida em outras partes do Brasil, e deixou os estádios paulistas menos festivos.
Claro, não há festa que valha uma vida perdida. Mas a resposta do governo foi equivalente a enxugar gelo. Torcedores violentos não precisam de mastros de bandeira para agredir ou matar uns aos outros. Há pedaços de cano, de pau, facas, armas de fogo… e os punhos e pés de quem vê o apoiador do time rival como um inimigo a ser exterminado.
Até porque, na mente desses fãs, “o outro” é sempre uma ameaça. Um risco à sua autoestima, à sua integridade física, à segurança do seu grupo e ao bem-estar de sua família – que, no cérebro do indivíduo que veste a camisa do time como uma segunda pele, são praticamente a mesma coisa.
É o que a ciência descobriu, e veremos a seguir.
Comportamento bipolar
Um estudo inglês publicado na Evolution & Human Behavior concentrou-se justamente nos torcedores brasileiros. E trouxe uma revelação que contraria o senso comum: torcedores de comportamento violento no âmbito do futebol não costumam demonstrar a mesma brutalidade em outros contextos da vida. É diferente de uma antiga concepção sociológica de que essas atitudes seriam uma catarse de pessoas agressivas com grandes frustrações (pobreza, desemprego, desamor…).
Falei em “torcedores violentos”? Atire a primeira pedra (não, não atire) quem nunca associou a mãe do árbitro a profissionais do sexo. Ou nunca sorriu com o canto da boca quando um craque do time adversário teve um machucado que lhe impedisse de jogar. Ou ainda: berrou no estádio, exigindo que um jogador do próprio clube do coração fosse mandado embora, porque não vem fazendo os gols que a torcida lhe cobra.
Sim, exigindo uma demissão. Agora reflita sobre o nonsense desse imperativo: quem, em outras circunstâncias, exige o desemprego de alguém que não conhece pessoalmente? Pior: quem vibra com o ferimento de um indivíduo cujo único pecado é ser talentoso em sua atividade? Isso para não falar na pobre da mãe do juiz: o que essa senhora tem a ver com tudo isso?
Pois é, se você é dos que acompanham futebol com paixão, provavelmente já disse palavrões para um atleta que perdeu um gol “que até minha avó faria”.
Agora mude o cenário: imagine que você trabalha no mundo corporativo e comete um erro num relatório… e aí um grupo de pessoas próximas começa a vaiá-lo e lhe fazer as piores ofensas. Surreal, para dizer o mínimo.
O fato demonstrado pelo estudo inglês é que, na maioria das vezes, os torcedores mais exaltados não são assim “na vida real”: não são disfuncionais, sociopatas nem dão um murro em quem vibra por um motivo que vai de encontro ao seu. A disposição para xingar, ameaçar e eventualmente ir às vias de fato se restringe ao ambiente do jogo. E isso tem um porquê ligado a raízes evolutivas, que remetem a um sentimento chamado “fusão de identidade”.
Animais sociais, como o Homo sapiens, evoluíram num contexto em que grupos competiam pela sobrevivência. São programados, então, para confiar e priorizar seu grupo. Recebem descargas de dopamina, o neurotransmissor do prazer, quando defende aqueles que o acolheram – sem eles, afinal, sua chance de permanecer vivo num ambiente selvagem seria zero.
O que o futebol (ou qualquer outro esporte de massa) faz é simular um ambiente hostil em meio à pasmaceira da vida civilizada. Ele traz de volta o deleite ancestral de pertencer a um grupo em luta constante pela sobrevivência – cenário no qual cada vitória é um triunfo contra a morte. Com isso, seja no ambiente de caça, coleta e guerra constante dos nossos ancestrais, seja nos estádios, o indivíduo e o grupo se fundem. Tornam-se uma coisa só.
Todos somos um
A psicologia aponta que o mais normal na vida é seu “eu pessoal” estar separado do “eu social”. O primeiro diz respeito à essência da sua personalidade, à sua inteligência, à sua visão de mundo e até a características físicas que influenciam na forma de ser quem você é – altura, idade, a simetria corporal que nos acostumamos a chamar de beleza. Já seu “eu social” é outra coisa: diz respeito à camaradagem, aos laços amorosos e à empatia (ou antipatia) quanto ao outro.
Porém, o ambiente do futebol desperta no indivíduo – mesmo naquele que todo mundo vê como o gente boa do escritório – um sentimento semelhante ao de soldados em guerra. Ele passa a se identificar com seu grupo a tal ponto que não distingue mais sua individualidade do conjunto ao qual se agregou. Ele não faz parte da torcida organizada ou apoia o time: ele e essa torcida são um elemento indivisível, único. Não só ele e a torcida. Ele e o time também.
Do lado de lá do estádio, também haverá gente cuja identidade fundiu-se à dos companheiros. A chance de um encontro entre os grupos acabar em briga, então, nunca é desprezível, mesmo se cada um dos componentes de cada agremiação forem indivíduos plenamente racionais. Em grupo, eles não serão.
“O comportamento violento é quase inteiramente focado naqueles que o torcedor considera como uma ameaça”, diz Martha Newson, pesquisadora do Centro de Antropologia e Mente da Universidade de Oxford e líder do estudo que citamos aqui. “Como tendem a experimentar os ambientes mais ameaçadores [o entorno de um estádio cheio de torcedores rivais, que farão de tudo para proteger seu próprio grupo], eles são ainda mais propensos a estar ‘em guarda’ e prontos para a batalha.”
Ao longo dos anos em que Martha pesquisou o comportamento dos torcedores na América Latina, Europa, Ásia e Austrália, o que ela mais ouviu dos entrevistados era que se sentiam como “parte de uma tribo”. E que “o futebol nos une como nenhuma outra coisa”.
“Comecei a suspeitar que a fusão de identidade, uma forma extrema e duradoura de vínculo social, era a resposta para a reviravolta tóxica.” Quando fala nesse tipo de reviravolta, ela se refere ao processo que transforma cidadãos geralmente pacatos em guerreiros dispostos a matar ou morrer. “A disputa de futebol torna-se, para essas pessoas, parte irrevogável de sua identidade.”
Cobrança em quem não tem a mesma identificação
É uma fusão que salta aos olhos. A identificação é tanta que qualquer chacota com seu time se transforma num abalo no ego do indivíduo. Mesmo que em todos os outros aspectos da vida ele seja um vitorioso – tenha uma família amorosa, seja bem-sucedido na carreira, mantenha uma saúde de ferro –, a provocação de um torcedor adversário, principalmente numa ocasião de derrota do time, é um golpe em sua autoestima. Uma vergonha pública que ele não admite.
Em fevereiro deste ano, a derrota do Paraná Clube para o União Beltrão resultou no rebaixamento de divisão dos paranistas. E na agressão aos atletas do clube, ainda em campo, por torcedores movidos pela ira e pela vergonha. Não foi a primeira vez que algo assim aconteceu, claro. E não será a última.
Aos olhos do torcedor-agressor, ele está lidando com indivíduos que traíram a confiança do grupo. Sujeitos que falharam na tarefa de garantir a sobrevivência – ou a reputação – de sua coletividade.
No âmbito do futebol, colabora para a revolta o fato de que os torcedores mais ferrenhos viajam grandes distâncias para jogos fora de casa e investem tempo e dinheiro participando dos eventos de seu time. Ou seja, eles sentem que estão cumprindo sua parte no jogo da fusão de identidade. Então querem a contrapartida.
O lado meio cheio do copo é que a mesma fusão que provoca violência entre os grupos pode ser usada para o bem. Martha e seus colegas apontam, por exemplo, que torcedores de times menos vitoriosos costumam ser poupados da violência de outras torcidas. Isso porque estes não os veem como uma ameaça à autoestima do grupo. A menor quantidade de apoiadores desses clubes não representa um risco físico para o “eu pessoal” fundido com o “eu social”.
Torcedores do Juventus, do bairro da Mooca, em São Paulo – um clube que há décadas disputava na elite do futebol brasileiro e costumava dar trabalho aos “grandes”, a ponto de ser chamado de “moleque travesso” –, costumam ser vistos com simpatia mesmo pelos mais obcecados torcedores de outros times. O desafio de quem estuda a psicologia do futebol é encontrar, nessa fusão de identidade, pontos que estendam essa empatia a rivais equivalentes em relevância no cenário do futebol. Mais adiante voltaremos a esse ponto.
Pressão civilizatória
Muito bem. Então o futebol traz à tona instintos primitivos de uma época em que Homo sapiens era uma espécie que vivia em guerra constante entre grupos. Mas hoje existe algo chamado “civilização” – a invenção humana que de fato nos fez suplantar o ambiente selvagem.
Em nome da civilidade, criou-se em 2003 o Estatuto do Torcedor – uma lei sancionada pelo então presidente Lula que procurou estabelecer os direitos e deveres dos torcedores. Estes ficam proibidos de ostentar símbolos ou entoar cânticos de caráter racista ou xenófobo; utilizar fogos de artifício dentro dos recintos esportivos (já que eles podem ser usados como arma); arremessar objetos em campo, e, claro, incitar ou praticar atos de violência dentro do estádio.
Já os clubes e as empresas que os patrocinam promoveram uma elitização do futebol, com suas grandes arenas e ingressos caros. Se por um lado isso criou uma triste gentrificação desse lazer, por outro envolveu investimentos direcionados a impedir que conflitos sangrentos estraguem o “espetáculo”. Nunca se viu tanta segurança em volta dos monumentais palcos em que os grandes times se apresentam. Ir a um clássico é razoavelmente seguro. Até porque não haverá grupos ameaçadores no local do jogo: hoje, no estado de São Paulo, partidas entre Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Santos só permitem a entrada no estádio dos torcedores “da casa”. Os visitantes veem a partida pela televisão mesmo.
E isso não deve mudar tão cedo: a Secretaria de Segurança de São Paulo apontou uma redução de 43% das brigas entre torcedores desde que a medida foi adotada, em 2016. Resultado disso é que, neste Campeonato Brasileiro de 2022, as bandeiras puderam voltar aos estádios paulistas. E elas têm sido usadas (pelo menos até o fechamento desta edição) só para embelezar a festa do futebol. Não para contribuir com tragédias, como a do são-paulino Márcio Gasparin da Silva – cuja morte precoce o impediu de ver seu time ser campeão mundial em 2005. Dez anos após o terror de que foi vítima.
Mas tem um detalhe. Para boa parte dos torcedores, os jogos de torcida única são mais chatos. Porque ir ao estádio não é só impulsionar o time. É competir com a torcida rival para ver quem impulsiona mais. É “invadir” o território (estádio) adversário para demonstrar coesão – e reforçar a autoestima.
Sem uma arquibancada dividida, o simulacro de ambiente selvagem que o esporte engatilha não roda com toda sua potência. E a coisa toda perde um tanto da graça. Eis a grande empatia entre grupos rivais equivalentes: no fundo, eles sabem que precisam do outro para existir.
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