Em meio à guerra na Ucrânia que já dura mais de três anos, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e o presidente da Rússia, Vladimir Putin, reúnem-se nesta próxima sexta-feira no Alasca para tentar destravar um acordo de paz. Mas, com Moscou exigindo concessões territoriais e Kiev resistindo a qualquer perda de soberania, o encontro promete expor as divergências que mantêm o conflito ativo. Para especialistas, a reunião pode definir não apenas o futuro das fronteiras ucranianas, mas também o equilíbrio de poder na Europa.
Por que o encontro entre Trump e Putin é relevante para a guerra na Ucrânia?
A reunião acontece no momento em que Trump busca cumprir sua promessa de encerrar o conflito russo-ucraniano, após tentativas anteriores fracassarem. Para isso, aposta em negociações diretas com Putin. Moscou exige que a Ucrânia se retire integralmente do Donbass — que abrange as províncias de Donetsk e Luhansk — e reconheça a soberania russa sobre a Crimeia. Kiev, por sua vez, exige a retirada total das tropas russas, a restauração das fronteiras de 1991 e garantias internacionais de segurança. O problema é que as posições são quase irreconciliáveis: enquanto Putin insiste que as áreas ocupadas são “para sempre” parte da Rússia, Zelensky e aliados europeus reforçam que fronteiras internacionais não podem ser alteradas pela força.
Quais territórios estão sob controle russo hoje?
Desde a anexação ilegal da Crimeia, em 2014, a Rússia expandiu sua ocupação para partes das províncias de Donetsk e Luhansk. Com a invasão em larga escala iniciada em fevereiro de 2022, Moscou passou a controlar também áreas das províncias de Kherson e Zaporíjia, no sul, incluindo a usina nuclear de Zaporíjia — a maior da Europa. No total, quase um quinto do território ucraniano está sob ocupação russa, com uma linha de frente que se estende por mais de mil quilômetros.
Por que o Donbass é central na disputa?
Região industrial e de mineração de carvão, o Donbass é descrito por analistas como o “cinturão fortificado” que impede avanços russos para o interior da Ucrânia. Cidades como Bakhmut e Avdiivka resistiram por anos, impondo altos custos à ofensiva russa. Perder o Donbass significaria entregar posições defensivas estratégicas, infraestrutura ferroviária vital e terrenos ricos em minerais e carvão — além de criar um corredor terrestre contínuo entre a Rússia e a Crimeia, reforçando a logística militar de Moscou.
Qual é a importância de Kherson e Zaporíjia?
Kherson e Zaporíjia, além de importância militar, são essenciais para a economia ucraniana. A região concentra terras férteis que fazem parte do papel histórico do país como “celeiro da Europa”. Antes da guerra, essas áreas respondiam por cerca de 10% da produção de trigo, cevada, colza e sementes de girassol da Ucrânia, segundo o Departamento de Agricultura dos EUA. Militarmente, o controle de Kherson permite acesso estratégico à foz do rio Dnipro e aproxima as forças russas da cidade portuária de Mykolaiv, porta de entrada para Odessa. Já Zaporíjia é sede da maior usina nuclear da Europa e um ponto logístico crucial no sul.
E por que Putin quer manter a Crimeia?
Anexada pelo Império Russo no século XVIII e transferida à Ucrânia soviética em 1954, a Crimeia é estratégica tanto pelo simbolismo histórico quanto pelo valor militar. É sede da Frota do Mar Negro, essencial para controlar rotas comerciais e militares na região. Desde 2018, a ponte de Kerch liga a península ao território russo, funcionando como rota de abastecimento para as frentes de combate. Para Putin, manter a Crimeia é vital; para Zelensky, é parte indivisível da Ucrânia
Quais seriam as consequências humanitárias de uma concessão territorial?
Entregar o Donbass ou outras áreas ocupadas poderia forçar centenas de milhares de civis a fugir ou deixá-los sob risco de abusos documentados em zonas sob controle russo — como detenções arbitrárias, tortura e desaparecimentos forçados. Só no setor controlado por Kiev da região de Donetsk vivem mais de 200 mil pessoas. Moradores e líderes locais afirmam que, sob ocupação, a população “apenas sobrevive”.
Putin estaria disposto a devolver territórios?
Pouco provável. Em 2022, o presidente russo declarou que Donetsk, Luhansk, Zaporíjia e Kherson seriam “para sempre” parte da Rússia, incorporando-as à Constituição. A lei russa proíbe devolver territórios reconhecidos como nacionais, e a visão de Putin vai além: ele considera ucranianos e russos “um só povo” e vê o colapso da União Soviética como a “desintegração da Rússia histórica”.
E qual é a posição da Ucrânia?
Zelensky defende a restauração das fronteiras de 1991 — quando a Ucrânia se tornou independente — e diz não ter autoridade constitucional para ceder partes do país, uma vez que a Constituição de 1996 estabelece que o território do país é “indivisível e inviolável”, além de definir a Crimeia como uma república autônoma “inseparável” da Ucrânia. Pesquisas indicam que a maioria dos ucranianos rejeita concessões, mas o apoio vem caindo com o prolongamento da guerra. Propostas para congelar a linha de frente sem reconhecer a anexação russa ganham algum respaldo, desde que acompanhadas de garantias de segurança.
Como Trump está lidando com a situação?
Embora Trump tenha se frustrado com Putin nos últimos meses devido à recusa em cessar as hostilidades, há poucos indícios de que isso possa resultar em um desfecho favorável para Zelensky, com quem o americano mantém uma relação volátil. Trump já sugeriu que um acordo poderia envolver “trocas de territórios” — ideia rejeitada de imediato por Kiev. No passado, sua equipe chegou a considerar reconhecer a anexação da Crimeia. Com perfil mais transacional, pode pressionar por perdas territoriais em troca de garantias políticas ou econômicas. O acordo assinado em abril, que dá aos EUA participação nos lucros de recursos minerais ucranianos extraídos de terras raras, pode servir de argumento para tentar recuperar parte das áreas ocupadas.
E qual é a posição dos aliados europeus?
A União Europeia mantém a defesa da integridade territorial da Ucrânia. Líderes reconhecem, porém, que negociações de paz podem incluir discussões sobre o controle de territórios, mesmo sem reconhecimento formal da soberania russa. A preocupação é que um cessar-fogo sem garantias sólidas permita a Putin reorganizar forças e voltar a ameaçar não só a Ucrânia, mas outros países da região.
O Globo