Novo Governo
Quando chegou ao poder pela primeira vez, há 20 anos, Luiz Inácio Lula da Silva despertou enorme simpatia internacional pela sua trajetória de vida e também suscitou dúvidas sobre os planos de governo. Em pouco tempo, ele afastou os temores de guinadas radicais na administração ou medidas irresponsáveis na economia, pavimentando o caminho para uma gestão de grande crescimento e consagração. As sementes dos problemas de corrupção, como o Mensalão, quase lhe custaram a reeleição, mas não impediram que deixasse o governo com 87% de aprovação, em 2010.
No governo de sua sucessora, Dilma Rousseff, o crime de colarinho branco evoluiu para um escândalo ainda maior, o Petrolão. A herdeira política escolhida a dedo por Lula encerrou os 13 anos de gestão petista em meio a uma ruína econômica, após jogar por terra políticas cuidadosamente implantadas pelo petista para garantir um apoio amplo e sólido: ela rasgou contratos, praticou um intervencionismo desmedido, flertou com a volta da inflação e desconsiderou alianças na sociedade e no Congresso, impondo uma administração comprometida apenas com seu partido. As manifestações de 2013 contra sua gestão já prenunciavam um esgotamento. O mal-estar desembocou três anos depois no colapso do petismo, com o nascimento do bolsonarismo.
Lula agora tem sua segunda chance. O seu novo triunfo é saudado mundialmente como um freio à ameaça representada pelos novos populistas, como Donald Trump, e também como uma volta ao consenso internacional contra o aquecimento global — que o Brasil liderou desde os anos 1990. O petista já se beneficia desse bônus externo, mas os desafios internos são muito maiores.
O novo presidente vai enfrentar um cenário muito mais adverso do que em sua primeira passagem pelo governo. Para começar, não vai se beneficiar do boom de commodities que na época trouxe muitos dividendos ao País e ajudou no financiamento dos programas sociais. Ao contrário, o cenário é de recessão global em 2023, com juros em alta pelo mundo. Isso tira divisas e diminui o apetite dos investidores. O petista receberá uma herança maldita da atual gestão. O rombo fiscal calculado por alguns economistas supera os R$ 400 bilhões para o próximo ano. Como Lula vai financiar o aumento do Auxílio Brasil, do salário mínimo e a maior isenção de impostos? Essas foram suas grandes promessas de campanha.
Além disso, ele terá uma oposição muito maior e mais hostil do que há 20 anos. O antipetismo está enraizado, como mostra o resultado expressivo obtido por Bolsonaro (58,3 milhões de votos). E boa parte dos votos de Lula vieram da rejeição ao capitão. A vitória é incontestável, mas o petista se elegeu com a dianteira mais apertada desde a redemocratização. O PT perdeu nos principais estados, com a exceção notável da Bahia, confirmando que a região Nordeste permanece como a grande fortaleza da legenda. A esquerda encolheu, no Congresso e nos governos estaduais. Na direção contrária, o Centrão cresceu e aumentou seu poder com o orçamento secreto. O País tem um conservadorismo mais cristalizado e uma direita que saiu do armário. A agenda de costumes conservadora foi capturada pelo bolsonarismo a partir da ascensão evangélica. Nos novos tempos, não basta discutir a fome e pautas sindicais, como o PT está acostumado: a sociedade é mais complexa.
Pacificação
Lula precisará de mais habilidade para pacificar a sociedade. Ele já fez isso uma vez, renunciando a vários dogmas de seu grupo político. Mas terá de demonstrar agora maior empenho nas negociações para dominar a pauta legislativa. As arruaças dos bolsões bolsonaristas nas estradas mostram que enfrentará um ambiente político conturbado. A lua de mel será mais curta e menos favorável do que há duas décadas. Se não mostrar grande perícia, ele se arrisca a esgotar seu capital eleitoral mais rapidamente.
O primeiro esforço começou logo após a eleição. Lula quer reiterar, por meio da equipe de transição, que a frente ampla que o elegeu terá voz no governo. É por isso que, em um aceno ao centro, designou Geraldo Alckmin para a coordenação do grupo de trabalho. O pessebista desembarcou em Brasília na noite de quarta-feira já com o compromisso de realizar, no dia seguinte, a primeira reunião de trabalho com Ciro Nogueira, ministro da Casa Civil e chefe da transição indicado por Jair Bolsonaro, e de iniciar as tratativas sobre o Orçamento de 2023 com o relator-geral da peça, Marcelo Castro (MDB-PI), e o senador eleito Wellington Dias (PT-PI), escalado para capitanear as articulações sobre o planejamento financeiro da próxima gestão.
Coordenador do PT na Comissão Mista de Orçamento, o deputado Ênio Verri (PT-PR) explica que, a partir desse primeiro tête-à-tête, as equipes técnicas vão mapear quais realocações de recursos podem ser feitas para a abertura de espaço orçamentário e, depois, quantificarão o “waiver” que Lula precisará do Congresso para implementar projetos emergenciais — um dos cotados para ministro da Fazenda, o ex-ministro Henrique Meirelles, por exemplo, calcula que a licença para gastar além do teto teria de ser de cerca de R$ 100 bilhões. A equipe petista quer o dobro desse valor. “Estamos negociando espaço para atender compromissos que, para nós, são básicos. São tarefas que não podem aguardar pela situação de miséria do País. As 33 milhões de pessoas que passam fome precisam ser atendidas agora”, defendeu o parlamentar. Ele minimizou a chance de os ministérios dificultarem a entrega de dados à equipe de Lula. Para o petista, a verdadeira preocupação está centrada no estado das contas públicas, que pode ser pior do que o divulgado.
Em paralelo às negociações no Congresso, o gabinete de transição funcionará com duas peças-chave. Aloizio Mercadante, que costurou o programa de governo de Lula, será o coordenador técnico. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, por sua vez, ficará encarregada da articulação política. Os dois vão liderar os coordenadores temáticos, com uma mescla entre especialistas e políticos indicados por todos os partidos da base aliada — por lei, o grupo pode contar com 51 pessoas, além dos servidores requisitados.
Enquanto aliados cuidam das negociações para pavimentar o caminho do governo, Lula quer reconstruir pontes entre o Palácio do Planalto, o Congresso e o STF, a fim de demonstrar a retomada de um quadro de “estabilidade”. Para isso, planeja encontrar os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco; da Câmara, Arthur Lira; e do STF, Rosa Weber. O petista chega à capital na segunda-feira, 7, depois de alguns dias de descanso em Trancoso, na Bahia, ao lado da futura primeira-dama, Rosângela da Silva, a Janja. Os encontros com autoridades durante a semana, contudo, ainda não têm data marcada.
No Judiciário, a expectativa é a de que o governo Lula restabeleça a harmonia entre os Poderes, muito embora o petista nutra mágoas por alguns ministros. Os magistrados lembram que, ao contrário de Bolsonaro, o ex-presidente enfrentou problemas com o STF sem partir para ofensas pessoais. Na seara política, Lula e aliados se esforçarão para ampliar a influência sobre o Congresso eleito. O manda-chuva do PSD, Gilberto Kassab, tem uma excelente relação com o petista e sonha em voltar à Esplanada dos Ministérios — é cotado, inclusive, para chefiar a Comunicação, segundo apurou a ISTOÉ. No MDB, o coro de apoio ao próximo governo será puxado por nomes da velha guarda, como Renan Calheiros e Eunício Oliveira. “Torço para que o partido integre a base desde o primeiro momento”, comenta Renan. Estão no radar do PT, ainda, o União Brasil e a federação formada por PSDB e Cidadania.
Promessas
Relator do Orçamento, Marcelo Castro antecipa que o governo encontrará uma dificuldade “enorme” em organizar as contas. “Não tem espaço orçamentário para nada”, crava. O senador recomenda “prudência” para a escolha de prioridades. “O Auxílio é essencial. Mas e outras propostas, como a correção da tabela do Imposto de Renda e a isenção de quem ganha até R$ 5 mil? É urgente?”, indaga. Confiante, Wellington Dias já antecipou que espera um aumento entre 1,3% e 1,4% para o salário mínimo acima da inflação em 2023.
O acerto sobre essas promessas de campanha será um primeiro passo para Lula administrar expectativas e demonstrar capacidade de governabilidade. A escolha dos ministros também poderá aferir a ambição da gestão. É preciso se cercar de titulares qualificados além das costuras fisiológicas ou da satisfação aos aliados. Seu governo precisará ser mais técnico. Para ser bem-sucedido, ele terá que governar de uma forma diferente do que fez nos anos 2000. Com a necessidade de enfrentar uma direita mais vocal, terá de caminhar para o centro de fato e se comprometer com uma frente democrática além do posto que reservou ao vice Geraldo Alckmin. Precisará fazer um governo de coalizão. Lula é conhecido pelo pragmatismo, mas terá de mostrar maior aderência programática às pautas centristas. Deverá também afastar-se da intolerância da pauta ideológica do seu partido.
São metas palpáveis que Lula poderá executar se mostrar desprendimento e consciência sobre seu papel histórico – o que pareceu demonstrar, por exemplo, em seu discurso da vitória, no dia 30, quando de fato fez um pronunciamento digno de um estadista. O petista fará um governo de transição, já que ele mesmo disse que esse será seu último mandato, por conta da idade avançada (terá 81 anos ao encerrar sua gestão). Sua nova passagem pelo poder também inicia uma nova fase política para o País. O quadro partidário que emergiu da redemocratização está esgotado, e novas legendas e lideranças deverão se afirmar. A geração que emergiu nos anos 1980, de Lula e FHC, está saindo de cena. Que sua nova gestão seja o norte para novos tempos de uma democracia vibrante, e não a oportunidade que defensores do atraso esperam para o retrocesso.
As dificuldades para LULA
O presidente eleito terá problemas de governabilidade e um cenário mais desfavorável do que em seu primeiro governo
FIM DO ORÇAMENTO SECRETO
O ex-presidente assegurou que extinguirá o orçamento secreto, que pode consumir R$ 19,4 bilhões do Orçamento de 2023. Congressistas se oporão, porque não querem abrir mão dos vultosos repasses a seus currais eleitorais. Para driblar o parlamento, Lula espera contar com uma “mãozinha” do Supremo Tribunal Federal, que pode declarar as emendas de relator inconstitucionais. A inclusão do tema na pauta da Corte depende da relatora do processo, a ministra Rosa Weber
CREDIBILIDADE FISCAL
O reequilíbrio das contas públicas será penoso. Prejudicados pela pandemia e pela guerra na Ucrânia, os cofres ainda sofreram duros golpes com a concessão de benesses eleitorais por Jair Bolsonaro. Responsável por resolver o problema, Lula adota um discurso ambíguo ao assegurar responsabilidade e, ao mesmo tempo, prometer o fim do teto de gastos. Especialistas classificam como “urgente” a apresentação de uma nova âncora fiscal diante da previsão de herança de um déficit de R$ 400 bilhões
INCLUSÃO SOCIAL
Lula anunciou a preservação do Auxilio Brasil de R$ 600 e o repasse de R$ 150 adicionais às famílias por cada criança de até 6 anos. Para cumprir a promessa, o petista precisa de R$ 70 bilhões extras no Orçamento. Mas esse não é o único desafio na área de inclusão social. A peça orçamentária também não comporta o reajuste do salário mínimo acima da inflação, o fortalecimento da Farmácia Popular e o reforço do programa Casa Verde e Amarela, antigo Minha Casa, Minha Vida
RELAÇÃO COM O CONGRESSO
Lula mantém uma boa relação com Rodrigo Pacheco, mas não pode dizer o mesmo sobre Arthur Lira. O petista terá de decidir se, em um acordo, abre mão de influenciar a disputa pela Presidência da Câmara e mantém uma relação cordial com o cacique do Progressistas, correndo o risco de ser traído adiante, ou se o desafia e, no caso de derrota de seu candidato, cria um feroz inimigo logo na largada do governo. A história do PT com Eduardo Cunha no comando do Salão Verde mostra o quão danosa pode ser a inimizade entre presidentes de poderes
RESPEITO NO EXTERIOR
É bem verdade que a eleição de Lula foi muito bem recebida pela comunidade internacional. O entusiasmo, porém, logo dará lugar a cobranças. O petista terá de apresentar no primeiro ano de governo dados que apontem para a queda de crimes florestais na Amazônia, uma vez que o descaso da gestão Jair Bolsonaro colocou o Brasil na condição de pária mundial
PACIFICAR O BRASIL
A pequena vantagem sobre Bolsonaro, de 2,1 milhões de votos, mostra que o antipetismo ainda pulsa no Brasil. Lula, portanto, terá de encontrar formas de reconquistar a confiança de ao menos uma parcela do eleitorado que o rejeita. Mais do que isso, vai precisar incentivar a pacificação de um país no qual a violência política está em ascendência, as instituições são constantemente ameaçadas e ideias nazistas ganham espaço, como indicam as cenas em que brasileiros replicam saudações protagonizadas, no século passado, por apoiadores de Adolf Hitler
Ressurreição política ecoa o passado
Assim como Getúlio Vargas, Lula foi do céu ao inferno em uma gestão popular e enfrentou o ostracismo. Os dois deram a volta por cima, mas o gaúcho teve um segundo mandato fatal
A volta de Luiz Inácio Lula da Silva ao poder coroa uma trajetória política espetacular. De líder operário que enfrentou a ditadura nos anos 1970 a presidente em dois mandatos populares, nos anos 2000, sua ascensão foi meteórica. A queda também foi dramática, com sua sucessora e aliada sofrendo um impeachment em meio à maior crise econômica da história do País e seu partido envolvido em um gigantesco esquema de corrupção.
O petista amargou 580 dias na prisão por acusações oriundas da Operação Lava Jato, para ter suas penas anuladas por questões processuais em 2021 e ser reabilitado politicamente. Desde então, tornou-se favorito para vencer Jair Bolsonaro, que chegou ao poder surfando no antipetismo e apresentando um discurso nostálgico do regime militar.
A vitória do petista é inédita em vários aspectos. Pela primeira vez, um mandatário conseguiu um terceiro mandato nas urnas. Também inusitado foi o fato de que um presidente em exercício, Jair Bolsonaro, fracassasse em sua reeleição. Sua eleição, com o apoio dos antigos adversários na redemocratização (inclusive FHC), também foi uma reafirmação da Carta de 1988.
É eloquente a semelhança da trajetória de Lula com a de seu antecessor no panteão da esquerda, Getúlio Vargas. O patrono do trabalhismo liderou uma ditadura feroz e foi afastado em 1945. Manobrou nos bastidores contra adversários para voltar ao poder pelo voto, em 1950 (um dos seus adversários foi Cristiano Machado, rifado pelo seu partido com a ajuda de Vargas, o que criou no vocabulário político brasileiro o termo “cristianizar”). Vargas também foi acusado de criar uma “república de sindicalistas” e estabeleceu direitos básicos dos trabalhadores, como o salário mínimo. A valorização real desse direito básico é a bandeira número 1 de Lula. Vargas surfou no nacionalismo, criou as grandes estatais e foi defensor do nacional-desenvolvimentismo. Lula, por outro lado, não é refratário ao capital estrangeiro, já que emergiu como líder sindical entre trabalhadores de multinacionais. Mas prioriza o crescimento pelo investimento público e defende um Estado grande.
Lula também teve no sindicalismo sua base de sustentação, mas renegou o peleguismo varguista. Ao contrário do gaúcho, Lula sempre defendeu a democracia, apesar da tentação de controlar a mídia por meio de “regulação”. Ainda assim, nunca chegou perto da censura e do aparato de propaganda de inspiração fascista de seu antecessor. Os dois enfrentaram perseguição e uma oposição feroz – ainda que Lula tenha enfrentado os adversários dentro do Estado de Direito. Os dois líderes se beneficiaram do mito populista de “pai dos pobres”.
A oposição udenista e a crise econômica que Vargas não conseguiu domar selaram o destino do seu segundo mandato de maneira trágica. Encurralado politicamente em seguida a um atentado frustrado contra seu maior inimigo, Carlos Lacerda, o gaúcho se matou e “entrou para a história”, como narrou em sua carta-testamento. Lula disse: “Tentaram me enterrar vivo, mas eu ressuscitei”. O lulismo será consagrado como o novo getulismo?
Istoé