Há quatro anos, quando comecei a sentir dores que não passavam com nenhum remédio, eu tinha certeza de que havia algo muito errado comigo. Passei alguns meses tentando descobrir qual era essa doença grave que não aparecia em nenhum exame, mas continuava a me causar um sofrimento intenso todos os dias. Como seria possível sentir tanta dor e não ter nenhum problema aparente no corpo?
Demorei muito tempo até descobrir que, atualmente, a dor crônica é reconhecida como uma doença por si só, ainda que não exista nenhuma lesão física. Durante esse período, estudei muito sobre o assunto e tive contato com alguns especialistas que me ajudaram a entender como a dor funciona. Uma dessas pessoas foi a psicóloga e cientista americana especializada em dor Rachel Zoffness, que conheci em um podcast.
Ela é uma das principais referências quando falamos de educação e tratamento de dor, e é autora do livro The Pain Management Workbook (com tradução prevista para 2026), um guia para ajudar pessoas com dor a recuperarem suas vidas. Na semana passada, tive o prazer de conversar com a Rachel por videochamada especialmente para esta coluna.
Uma das coisas que ela me disse é que estamos tratando dor crônica da maneira errada há décadas, como se ela fosse um problema puramente biológico, quando na verdade se trata de uma questão biopsicossocial — envolve também fatores sociais e emocionais. “Estamos fazemos errado há muito tempo. A neurociência da dor existe desde os anos 1960, mas ainda estamos dividindo mente e corpo como se fossem coisas separadas”, afirma.
É importante dizer que a dor é o sistema de alarme do nosso corpo, e existe para nos proteger. “Quando sentimos dor, isso é um sinal para que prestemos atenção e investiguemos se há algo errado”, explica. O que acontece com a dor crônica, segundo ela, é que o nosso sistema nervoso entra em um estado de alerta constante e se torna extremamente sensível à dor, enviando sinais de perigo mesmo na ausência dele.
Ou seja: o componente biológico da dor crônica envolve modificações no cérebro e no sistema nervoso central. Trata-se de uma doença real, mas que definitivamente não é apenas isso. “Todos nós fomos enganados por esse mito de conectar dor com lesão. Dizemos para as pessoas que ou a dor é física, e ela deveria ver um médico, ou a dor é emocional e ela precisa de um psicoterapeuta. Não é assim que funciona”, afirma Rachel Zoffness.
“Quando temos dor nas costas, a primeira que coisa que fazemos é procurar um médico, ou talvez 20 médicos, realizamos exames, tomamos injeções e fazemos até cirurgias. Eu não estou dizendo que as coisas não podem estar erradas no nosso corpo, mas suas costas não produzem dor, seu pescoço não produz dor. Ela é produzida no cérebro”.
O que sentimos e pensamos influencia a nossa dor
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Para além do fator biológico, a dor crônica envolve componentes emocionais e psicológicos que influenciam — e muito — como nos sentimos.
A dor física está relacionada com nosso estado emocional 100% do tempo. Se estamos estressados, ansiosos, isolados ou solitários, o cérebro vai amplificar o alarme de dor. E a maioria de nós já vivenciou isso, quando uma depressão ou ansiedade fazem nosso corpo se sentir piorRachel Zoffness, psicóloga e cientista
Segundo Zoffness, existe um estigma muito grande em torno da influência das emoções na dor, especialmente para mulheres. Eu mesma já ouvi muitas histórias de pacientes que foram menosprezadas pelo sistema de saúde. Em um dos casos mais recentes com que tive contato, o médico chegou a virar para o marido de uma mulher para dizer que “ela não tinha nada”. Fico imaginando como ela deve ter se sentido.
“Dizem que a dor está na nossa cabeça, e que é um problema apenas de saúde mental. Mas a neurociência nos diz que emoções, pensamentos, crenças, memórias de experiências passadas e traumas influenciam o volume da dor”, conta Rachel Zoffness.
“Se eu estou em casa pensando: sou um perdedor, ninguém gosta de mim, vou ficar com dor para sempre, ninguém pode me ajudar, como vou me sentir? Sabemos que isso afeta a química do nosso cérebro e como o corpo se sente. Então nossos pensamentos e crenças têm muito poder, muito mais do que reconhecemos.”
Somos seres sociais
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Pesquisas já nos mostraram que a solidão pode influenciar negativamente na nossa saúde, e estar isolado socialmente é um dos fatores que mais contribui para o aumento de dores crônicas. Não apenas isso: o status socioeconômico, o acesso à saúde, o ambiente em que a pessoa vive, a família, a rede de apoio e até mesmo a cultura podem ter um papel importante em como nosso corpo se sente.
“Esse domínio da dor é ignorado o tempo todo. O que esquecemos é que humanos são animais sociais. Quando estamos em comunidade, nosso cérebro produz opioides, químicos que precisamos para diminuir a dor. Nós sabemos que o isolamento amplifica a dor, e o suporte social a diminui”, explica a cientista.
Infelizmente, uma pessoa com poucas condições econômicas e sem rede de apoio tem muito menos chance de receber um tratamento adequado para sua dor.
Eu me lembro de, alguns anos atrás, ter participado de um grupo para pessoas com dor em que eu era a mais nova no meio de várias pessoas idosas. Uma delas particularmente me marcou. Era uma senhora com mais de 60 anos, que contou ter uma dor constante e horrível nos pés 24 horas por dia. Ela tinha se isolado completamente: não saia de casa e não recebia mais a visita de familiares ou de amigos, que achavam que ela reclamava demais.
Às vezes me pego pensando que, se ela tivesse com quem conversar, se recebesse o tratamento adequado e se voltasse a fazer atividades prazerosas (ela tinha dito que adorava pintar), talvez pudesse se sentir melhor.
Uma receita para cada pessoa
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Rachel Zoffness me disse que, assim como um boa receita de brownie precisa dos ingredientes certos, da temperatura correta e do recipiente mais adequado, existe uma receita para tratar dor crônica que é individual para cada paciente. E isso envolve desde os fatores biológicos, sociais e emocionais mencionados neste texto até sono, dieta, lazer e exercícios.
Se você tem dor crônica e tentou todas as coisas básicas, os medicamentos e os procedimentos, o que isso me diz é que existem ingredientes na sua receita de dor que ainda não descobrimos. A dor é um problema de uma pessoa inteira, então, se você olhar apenas para uma coisa, não vai funcionarRachel Zoffness
No meu caso, em que medicamentos não fazem efeito, consegui identificar algumas atividades que diminuem o volume da minha dor, como interações sociais e atividades prazerosas. Pra mim, faz muito mais sentido cozinhar um prato gostoso, fazer aula de cerâmica, passear no parque e ir ao cinema do que usar um analgésico. Mas é importante dizer que essa é a minha receita pessoal, e para cada um funciona de um jeito.
Uma das coisas mais importantes, segundo a especialista, é se manter em movimento. “Enquanto na dor aguda precisamos parar de fazer coisas — como quando quebramos a perna e não podemos mais correr —, isso não é verdade para a dor crônica. Para nos sentirmos bem, recuperarmos o nosso poder e ajudarmos nosso cérebro a mudar, precisamos fazer as coisas que a dor está falando para a gente parar de fazer”, aponta.
Segundo ela, é preciso mudar a maneira como enxergamos a dor, começando na educação dos profissionais de saúde e passando pela conscientização da sociedade como um todo.
“A dor crônica está crescendo, e existem mais pessoas com dor hoje do que 10 anos atrás. Sabemos que nossos tratamentos não estão funcionando, e acho que a única forma de fazer essa mudança acontecer é começar a ensinar isso em cursos na área da saúde. Se não fizermos isso, esse mito de que a dor é puramente física será perpetuado. Essa é a raiz do problema”, completa.
* Larissa Agostinho Teixeira (@dadoreoutrosdemonios) é jornalista formada pela USP com mais de 10 anos de experiência como repórter, redatora e editora de vídeos e documentários. Escreve sobre dor crônica em uma coluna em VivaBem.
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