Você se lembra de quando limpava cada item da compra do supermercado (e até as sacolas de plástico)? Ou de quando começaram a aparecer as primeiras máscaras caseiras? E a época em que a cloroquina era encarada como um tratamento promissor contra a covid-19?
Pois é, o conhecimento evolui constantemente, e as recomendações que valiam ontem podem deixar de fazer sentido hoje ou amanhã.
Durante uma pandemia, esse avanço é ainda mais veloz. Portanto, ficar atento às diretrizes e consensos entre especialistas pode ser, literalmente, uma questão de vida ou morte.
Desde fevereiro de 2020, quando os casos de covid-19 começaram a se espalhar pelo mundo, as recomendações de prevenção, diagnóstico e tratamento da doença se transformaram radicalmente.
Chegou a hora de conhecer melhor como essas mudanças aconteceram — e entender como elas nos trazem mais segurança e certeza de que, um dia, essa crise sanitária vai passar.
1. As máscaras têm poder
Durante boa parte do primeiro semestre de 2020, autoridades e instituições públicas como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos foram unânimes em afirmar que as máscaras só deveriam ser usadas por médicos, enfermeiros e profissionais da linha de frente ou indivíduos com suspeita e diagnóstico de covid-19.
A recomendação estava baseada em dois argumentos principais. Primeiro, havia um medo de que a peça colada ao rosto incomodaria, fazendo com que as pessoas levassem as mãos aos olhos, nariz e boca com mais frequência. Isso, em tese, aumentaria o risco de infecção, pois os dedos poderiam estar contaminados com o coronavírus.
O segundo motivo estava vinculado a uma eventual escassez de material de proteção a quem mais precisava, como os pacientes e os profissionais da saúde: temia-se que uma busca desenfreada pela compra de máscaras acabaria com os estoques disponíveis.
Mas a verdade é que nenhum desses dois pontos era 100% verdadeiro.
“Mesmo naquela época, não existia nenhuma evidência para sustentar a ideia de que as pessoas que usam máscaras mexem mais na própria face”, diz o físico Vitor Mori, pesquisador da Universidade de Vermont, nos Estados Unidos.
“E o Brasil tem uma indústria bem preparada e possivelmente não teríamos falta de máscaras profissionais, como a PFF2 (que é a que mais filtra partículas e melhor veda o rosto contra o vírus), mesmo se fosse recomendado seu uso para a população geral desde o começo”, completa o especialista, que também integra o Observatório Covid-19 BR.
Outro fenômeno relativo a esse método preventivo está relacionado à evolução da qualidade do material: no início, o indicado era botar a máscara caseira de pano com duas ou três camadas de tecidos diferentes.
Com o passar dos meses, porém, as máscaras cirúrgicas e os modelos profissionais (como a PFF2 ou a N95) ganharam terreno e se tornaram mais populares.
E isso está diretamente vinculado à evolução do conhecimento sobre as formas de disseminação do coronavírus.
“A compreensão ampla dos mecanismos de transmissão de vírus respiratórios foi, sem dúvida, uma das maiores revoluções científicas que vivemos nos últimos tempos”, compreende Mori.
No início, pensava-se que o agente infeccioso passava de uma pessoa para outra somente através de gotículas de saliva, que são expelidas quando a gente fala, tosse ou espirra.
Como essas tais gotículas têm um tamanho maior, elas são mais pesadas e logo caem em direção ao solo pela força da gravidade.
Seguindo esse raciocínio, acreditava-se que a transmissão dependia da proximidade: um indivíduo infectado expele as partículas de saliva com o vírus dentro, que são ejetadas a uma distância de até dois metros e vão parar no rosto de outras pessoas, onde iniciam um novo ciclo da doença.
Nessa situação, as máscaras de tecido até que são uma boa. Elas conseguem barrar a saída ou a entrada dessas gotículas de saliva maiores.
Com o passar do tempo, porém, os cientistas foram observando que a covid-19 tem uma segunda forma de transmissão: os aerossóis.
Eles também são partículas de saliva, mas de tamanho muito reduzido. Como são menos pesadas, elas ficam vagando pelo ambiente por muito mais tempo, numa dinâmica parecida ao que acontece, por exemplo, com a fumaça do cigarro.
Daí uma pessoa desavisada pode aspirar esse material e botar o coronavírus pra dentro do sistema respiratório se não estiver com uma proteção adequada, capaz de filtrar essas estruturas diminutas.
“Um indivíduo infectado com o coronavírus pode entrar num elevador, espirrar e sair. E os aerossóis ficam pairando por algum tempo naquele ambiente”, explica o infectologista Celso Granato, diretor do Fleury Medicina e Saúde.
“Daí você pode entrar nesse mesmo elevador vazio em outro andar e acabar se contaminando”, conclui o médico, que também é professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
É justamente para evitar que cenários como esse virem realidade que existem as máscaras PFF2 ou N95: elas vedam todas as possíveis entradas da face, especialmente a maçã do rosto, as bochechas e o queixo, bloqueando e filtrando os aerossóis carregados de vírus.
2. Desinfetar não é tão importante assim
Uma “moda” que marcou os primeiros meses da pandemia foi a limpeza constante das mãos e de superfícies, corrimões, maçanetas, objetos de uso pessoal e compras de supermercado.
Itens de limpeza, como o álcool 70%, o álcool em gel, o desinfetante e a água sanitária tiveram um crescimento significativo — segundo a Associação Brasileira das Indústrias de Produtos de Higiene, Limpeza e Saneantes de Uso Doméstico e de Uso Profissional (Abipla), esse mercado cresceu 13% no Brasil durante o primeiro semestre de 2020, com destaque para um aumento de 67% na venda de produtos à base de álcool.
E esse interesse todo tinha a ver com as recomendações dos especialistas e das agências públicas, que apontavam a desinfecção como uma das principais medidas preventivas contra a covid-19.
Com o tempo, essa ideia perdeu muita força, conforme se observou a relevância dos aerossóis na transmissão do coronavírus.
Como você viu mais acima, as gotículas de saliva com coronavírus não necessariamente se depositam nas superfícies, mas ficam pairando no ar e podem ser aspiradas.
Atualmente, muitas instituições, como o CDC americano, ainda consideram o contato com objetos contaminados como uma possível fonte de infecção, mas admitem que a probabilidade de isso acontecer na prática é baixíssima.
Que fique claro: a higiene das mãos e do ambiente é sempre uma atitude bem-vinda, inclusive para prevenir outras doenças infecciosas.
Mas quando falamos de vírus respiratórios, existem outras ações mais importantes, sobre as quais deveríamos focar mais as nossas atenções.
É o caso, por exemplo, de usar máscaras de melhor qualidade, de evitar aglomerações e de caprichar na circulação do ar pelos ambientes — o que nos leva, aliás, ao nosso próximo tópico.
3. O ar precisa circular
Um trabalho publicado em maio de 2020 foi decisivo para que a ciência entendesse melhor a dinâmica de transmissão do coronavírus.
Os especialistas do condado de Skagit, em Washington, nos Estados Unidos, relataram o caso dos cidadãos que participavam de um coral, que se reunia periodicamente para praticar o canto.
No dia 17 de março de 2020, 61 integrantes do grupo se reuniram para um ensaio numa sala fechada. Detalhe importante: uma pessoa estava infectada com o coronavírus.
O resultado disso foi que, alguns dias depois, 52 tinham suspeita ou covid-19 confirmada, o que representa 87% de todos os presentes.
“A partir dali, nós começamos a prestar mais atenção aos clusters de superespalhamento do coronavírus, que geralmente acontecem em locais fechados e pouco ventilados”, diz Mori.
E isso faz todo o sentido quando lembramos que o vírus é transmitido através dos aerossóis, que saem da boca e do nariz quando espirramos, tossimos e falamos (ou cantamos, no caso do coral).
Como você viu no primeiro tópico, essas gotículas ficam vagando pelo ambiente, especialmente quando não há circulação de ar.
Se o local conta com uma brisa ou um sistema eficiente de troca do ar, os aerossóis infectados acabam “diluídos” e descartados antes de serem inalados por outras pessoas.
Foi através deste trabalho americano e de outras investigações publicadas na sequência que foi possível entender a importância de manter as janelas abertas e o ambiente arejado — ou, de preferência, realizar atividades ao ar livre.
“Para mim, a falta de ênfase sobre a importância dos locais abertos e da ventilação foi o maior erro que tivemos na condução da pandemia”, avalia Mori.
4. Só medir febre não adianta
Outro “protocolo” clássico desde o início da pandemia envolve os termômetros: um funcionário era designado para ficar na frente de estabelecimentos comerciais para medir a temperatura das pessoas que passavam por ali.
No começo, aliás, a medição era feita na testa, mas uma notícia falsa que circulou por redes sociais e WhatsApp apontava que os “raios infravermelho” do aparelho podiam mexer com o cérebro. Isso fez com que a temperatura fosse checada no pulso.
Essa prática, aliás, continua a acontecer em muitas regiões do Brasil, apesar de as evidências científicas terem evoluído.
O problema é que essa estratégia não faz sentido e pode deixar escapar muita gente com covid-19.
Em primeiro lugar, a infecção pelo coronavírus demora alguns dias para dar as primeiras manifestações, como a febre. Nesse meio tempo, a pessoa pode transmitir o vírus para contatos próximos.
Segundo, já se admite há muitos meses que existem outros sintomas possíveis da doença, como diarreia, conjuntivite e perda de olfato e paladar.
Por fim, há uma parcela significativa dos acometidos que não apresentam sintoma algum e, mesmo assim, podem repassar o agente infeccioso adiante.
Os termômetros, portanto, podem reforçar uma falsa sensação de segurança, em que os indivíduos com a temperatura normal acham que estão livres do perigo, quando a realidade é bem mais complexa do que isso.
5. A doença vai muito além do sistema respiratório
Parecia simples: o coronavírus invade o organismo através das células da superfície dos olhos, do nariz ou da boca. Com o passar do tempo, ele ganha terreno e vai parar nas vias aéreas superiores (que se estendem até a região da garganta), onde dão os sintomas clássicos de tosse seca, febre e cansaço.
Nos casos mais graves, os pulmões são tomados (o que ocasiona a falta de ar), e isso exige tratamentos mais intensivos e há risco de morte.
A prática, porém, revelou que essa trajetória viral é muito mais complexa do que o esperado.
“Em alguns pacientes, começamos a encontrar o coronavírus em outras partes do corpo. Detectamos, por exemplo, o agente infeccioso nas fezes de algumas pessoas, que tinham a diarreia como único sintoma”, relata Granato.
“Percebemos então que não estávamos lidando com uma doença pulmonar, mas, sim, com uma enfermidade do endotélio, que é uma camada de células que reveste o interior de nossos vasos sanguíneos”, continua o infectologista.
“Com isso, apesar do foco maior nos pulmões, passamos a entender que covid-19 também poderia acometer os intestinos, o coração, o sistema circulatório, os rins, o cérebro…”, completa.
6. A surpresa da covid longa
E há mais um ingrediente fundamental nessa história. Muitas das doenças infecciosas são autolimitadas.
Em outras palavras, a pessoa contrai o vírus, a bactéria ou o fungo, desenvolve os sintomas e, após alguns dias, o quadro melhora ou piora de vez. O final dessa história é a cura ou a morte.
Esse é o rito que sucede na maioria das vezes após o resfriado, a gripe, o ebola…
Mas a covid-19 mostrou ser muito mais complexa e há muitas pessoas que seguem apresentando incômodos meses após a infecção inicial.
Para piorar, a diversidade desses desdobramentos é algo que intriga médicos e cientistas: um artigo da Universidade College London, no Reino Unido, publicado em julho de 2021, chegou a listar 200 possíveis sintomas diferentes da covid longa.
Alguns afetam o cérebro e podem estar por trás de problemas de memória e raciocínio. Outros prejudicam o ciclo menstrual das mulheres ou a capacidade de ereção dos homens. Há ainda aqueles que causam palpitações no coração ou deixam a visão borrada.
“Esses são fenômenos que não pensávamos que fossem acontecer e eram absolutamente desconhecidos”, admite Granato.
“Ao longo desse tempo, nós aprendemos a ficar de olho nos sintomas diferentes e acionar colegas especialistas naquilo, como cardiologistas e neurologistas”, complementa a infectologista Raquel Stucchi, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
“Em muitos casos, essa abordagem multidisciplinar é necessária para acompanhar os pacientes com covid longa, algo que não era esperado originalmente”, conclui a especialista, que também integra a Sociedade Brasileira de Infectologia.
7. Testes devem ser usados com inteligência
A princípio, o raciocínio até fazia sentido: por que não fazer exames periódicos em toda a população, de modo a encontrar os casos assintomáticos ou logo antes de os primeiros sinais da doença aparecerem?
A lógica, porém, esbarra em questões práticas. Fazer programas de testagem amplos sem nenhum critério é algo difícil de se manter no longo prazo, por falta de equipamentos e recursos humanos, e pode levar ao desperdício de insumos valiosos.
É por isso que muitos especialistas defendem o uso desses exames de forma otimizada, com o objetivo de reduzir a transmissão do coronavírus na comunidade — foi essa a estratégia adotada por países como Austrália e Nova Zelândia, que alcançaram os ótimos resultados na condução da pandemia.
“Vamos supor que um paciente com sintomas faz o teste e ele dá positivo. O próximo passo seria ir atrás das pessoas com quem ele teve contato nos últimos dias, para que elas também sejam avaliadas”, exemplifica Granato.
“Daí aqueles indivíduos que estiverem infectados, mesmo sem sintomas, são identificados e isolados antes que transmitam o vírus para outros, cortando as cadeias de transmissão”, completa.
Esse método, chamado de rastreamento de contatos, nem é algo tão inovador assim. Mas hoje em dia é possível adotá-lo e até aumentar sua eficácia com a ajuda da tecnologia — os quarentenados podem fazer consultas por aplicativos de videochamada e receber orientações por mensagens de texto, por exemplo.
8. Tratamento precoce (ainda) não teve sucesso
O sonho de todo médico que atua na linha de frente era ter um remédio que pudesse ser prescrito logo no início dos sintomas para curar de vez a covid-19.
E vários medicamentos foram testados nesse meio tempo, mas nenhum mostrou um bom resultado até o momento.
Foi o caso da hidroxicloroquina, da ivermectina, da azitromicina, da nitazoxanida e vários outros integrantes do “kit covid”, que se mostraram ineficazes ou até prejudiciais (quando os efeitos colaterais superam qualquer benefício).
“Nos testes iniciais, com culturas de células e cobaias, algumas dessas substâncias até mostravam algum efeito. Mas quando as pesquisas evoluíram para seres humanos, esses resultados não se mantiveram”, contextualiza Granato.
A evolução terapêutica foi um pouco maior quando consideramos os casos mais graves de covid-19, que exigem cuidados hospitalares.
“Com o tempo, aprendemos o valor da ventilação mecânica e de medicações que aumentam a sobrevida do paciente, desde que administrados no momento certo, como é o caso de alguns anti-inflamatórios e anticoagulantes”, conta Stucchi.
9. O vírus tem múltiplas facetas, mas pode ser derrotado
Por último, o virologista Paulo Eduardo Brandão, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (USP), chama a atenção para o surgimento de múltiplas variantes do Sars-CoV-2, o coronavírus responsável pela pandemia atual.
“Isso não era algo que esperávamos lá no início”, avalia.
“Não observamos esse mesmo comportamento nos surtos de Sars [Síndrome Respiratória Aguda Grave], em 2003, e de Mers [Síndrome Respiratória do Oriente Médio], em 2011, que também foram causados por tipos de coronavírus”, diz.
O aparecimento das novas linhagens, como a Alfa, a Beta, a Gama e a Delta, explica o pesquisador, tem a ver com a rápida disseminação do vírus por todo o planeta.
“As variantes não são exatamente uma surpresa, mas no início nós não sabíamos que esse coronavírus seria a causa de uma pandemia, se espalharia nessa velocidade e permaneceria por tanto tempo entre nós”, aponta Brandão.
A boa notícia é que as vacinas disponíveis atualmente continuam a funcionar contra essas novas versões virais, apesar de sofrerem uma diminuição de sua eficácia original.
Tomar as doses, aliás, é o melhor caminho para proteger a si e contribuir para o controle coletivo da pandemia.
“A vacinação é o meio mais seguro e eficaz para sairmos dessa e conseguirmos retomar nossa vida próximo ao que vivíamos lá em 2019”, finaliza Stucchi.
BBC