Movimentos antibolsonaristas vão testar outra vez as ruas neste sábado, depois de levar multidões a protestar no dia 29 de maio. As frentes Povo sem Medo, Brasil Popular e a Coalizão Negra por Direitos, organizações que congregam centenas de movimentos sociais, querem amplificar o grito de “Fora, Bolsonaro”, muito embora a pauta do impeachment continue parada no Congresso. Há atos marcados em pelo menos 409 cidades —foram 230 da última vez—, de acordo com os organizadores, para pedir o impeachment do presidente, celeridade no processo de vacinação contra a covid-19, o retorno do auxílio emergencial de 600 reais (o valor pago agora é menos da metade) e o fim do racismo e da violência policial contra a população negra.
O protesto vai ser um teste também para o ex-presidente Lula da Silva, que já manifestou vontade de participar dos atos deste sábado, ao contrário do que aconteceu no dia 29, quando preferiu o silêncio antes e durante as manifestações. “Não quero transformar um ato político em um ato eleitoral. Não quero os meios de comunicação explorando isso como o Lula se apropriando de uma manifestação convocada pela sociedade brasileira”, escreveu ele em sua conta no Twitter.
A nova convocatória acontece às vésperas de que o país alcance a triste marca de meio milhão de mortos pela covid-19, e com 95.000 óbitos pela doença registrados nas três semanas que separam este daquele primeiro protesto massivo, de acordo com os dados do Ministério da Saúde. “Há um sentimento hegemônico de basta, de não aguentar mais tanto a situação da pandemia, em si, como toda a catástrofe social do país. As pessoas que tinham assistido às primeiras ondas da pandemia meio de longe agora se percebem perdendo pessoas próximas”, comenta Douglas Belchior, porta-voz da Coalizão Negra por Direitos. Nesta sexta-feira, mais uma vez o Rio de Janeiro assistiu à morte de um jovem negro em meio a uma operação policial no Complexo do Alemão. Thiago da Conceição, 16 anos, foi baleado na cabeça dentro de casa, segundo relato dos familiares.
Bolsonaro, porém, conta ainda com apoio irrestrito de eleitores que ignoram os movimentos sociais e sustentam o discurso do presidente sobre a covid-19 e seu inexistente tratamento precoce, bem como a suposta ameaça do comunismo. No último sábado, dia 12, o mandatário promoveu um ato simbólico em seu apoio, com um comboio de motos em São Paulo que saiu do Campo de Marte, seguiu até o km 62 da rodovia dos Bandeirantes e terminou na região do parque do Ibirapuera, onde Bolsonaro fez um discurso negacionista. Foi ovacionado pelas pessoas que ocuparam cerca de dois quarteirões da avenida Pedro Álvares Cabral, boa parte repetindo o estilo do presidente, sem usar máscaras ou distanciamento.
Os atos deste sábado prometem repetir os cuidados do primeiro, com o incentivo ao uso de máscaras PFF2, álcool gel e distanciamento. A volta para as ruas acontece depois de um ano e meio de pandemia e serve de termômetro para sentir a polarização que deve se estender até o ano que vem. De um lado os antipetistas, e agora, os antibolsonaristas, especialmente os de classe média, crescem nas ruas à medida que a pandemia trouxe de volta mazelas que pareciam superadas.
A fome e a CPI
O aumento da fome no país é, segundo os organizadores, outro dos principais elementos que motivam dos protestos anti-Governo: Em 2020, 19 milhões de pessoas viviam em situação de fome no país, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da covid-19 no Brasil, um número 27,6% maior do que o de 2018, quando eram 10,3 milhões de indivíduos. Na quinta-feira, o ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou que o brasileiro desperdiça comida, porque “enche o prato” e deixa “uma sobra enorme” nas refeições. “O prato de um classe média europeu, que já enfrentou duas guerras mundiais, é relativamente pequeno e, aqui, nós fazemos almoço e deixamos uma sobra enorme”, disse ele durante um debate promovido pela Associação Brasileira de Supermercados (Abras).
“Já existe há muito tempo uma queda de popularidade do Governo Bolsonaro, só faltava as pessoas se organizarem para ir às ruas. Com o agravamento da pandemia, isso mudou”, comenta Josué Rocha, porta-voz da frente Povo Sem Medo, que cita também a pressão política da CPI no Senado que investiga a má gestão de Bolsonaro e sua equipe sobre a crise sanitária. Na sexta-feira, os senadores decidiram investigar o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e os ex-ministros Eduardo Pazuello (Saúde) e Ernesto Araújo (Relações Exteriores), além de outras 11 autoridades que podem confirmar a existência de um gabinete paralelo que deu suporte ao presidente em decisões equivocadas que negligenciaram a gestão da covid-19 e elevaram o número de mortes no Brasil.
O clamor pelo impeachment de Jair Bolsonaro —uma proposta que cresce em aprovação popular, mas ainda esbarra na resiliência da base social e parlamentar do presidente— ganha força no contexto em que surgem novas ameaças à democracia brasileira. A mais recente delas foi o caso de Pazuello, que, sendo um militar da ativa, contrariou as regras do Exército ao participar de um ato político ao lado de Bolsonaro no dia 23 de maio, mas teve o caso arquivado e não foi punido pela entidade de Defesa. “Acho que é um fato muito grave, talvez o mais grave fato do ponto de vista institucional desde o início do Governo Bolsonaro, e talvez a mais grave ameaça direta à democracia desde o Governo militar”, resumiu ao EL PAÍS Celso Amorim, que foi ministro das Relações Exteriores entre 2003 e 2010, durante a gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), além de ministro da Defesa entre 2011 e 2015, durante os mandatos de Dilma Rousseff (PT).