O segundo turno das eleições de 2022 foi marcado por tensão devido a uma operação da Polícia Rodoviária Federal (PRF) — na época sob comando do governo de Jair Bolsonaro (PL) — para fiscalizar a circulação de ônibus em áreas de forte base eleitoral do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em especial no Nordeste.
A operação, que desrespeitava uma decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) proibindo a PRF de qualquer ação no transporte público no dia da votação, levou o então presidente da Corte, Alexandre de Moraes, a ameaçar de prisão em flagrante o então diretor da instituição, Silvinei Vasques.
Dois anos e meio depois, Vasques e mais cinco denunciados podem virar réus no Supremo Tribunal Federal (STF) a partir desta terça-feira (22/04), acusados de participar de uma suposta trama golpista para evitar a eleição de Lula e manter Bolsonaro no poder.
Faz parte do grupo a única mulher denunciada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) entre os 34 acusados de organizar e implementar a tentativa de golpe de Estado — a delegada da Polícia Federal (PF) Marília Ferreira de Alencar, que foi diretora de Inteligência no Ministério da Justiça no final do governo Bolsonaro e teria municiado a operação da PRF com informações sobre os municípios com mais eleitores de Lula.
Além disso, Alencar também é acusada de ter contribuído para que as forças de segurança do Distrito Federal (DF) não impedissem bolsonaristas radicais de invadir e vandalizar as sedes dos Três Poderes no 8 de janeiro de 2023.
Na ocasião, ela era subsecretária de Inteligência da Secretaria de Segurança Pública do DF, nomeada pelo então secretário de Segurança Anderson Torres, ex-ministro da Justiça de Bolsonaro e também acusado de participar da trama golpista.
A delegada nega as acusações e contratou para defendê-la o advogado Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça do governo de Dilma Rousseff (PT). Um dos argumentos da defesa é que o próprio Ministério Público Federal arquivou um inquérito civil contra Alencar, após não encontrar evidências de sua omissão no 8 de janeiro.
O STF já tornou réus oito denunciados em março, acusados de integrar o chamado “núcleo crucial” da trama golpista, incluindo Bolsonaro, Anderson Torres e três generais do Exército que integravam seu governo — Augusto Heleno (ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional), Paulo Sérgio Nogueira (ex-ministro da Defesa) e Walter Braga Netto (ex-ministro da Casa Civil).
Segundo a acusação, os seis denunciados que serão julgados agora formam o “núcleo de gerenciamento das ações” ordenadas pelo núcleo crucial. Para a PGR, eles teriam direcionado a atuação de órgãos policiais, coordenado o monitoramento de autoridades, mantido contato com manifestantes acampados ou elaborado minutas golpistas.
Além de Silvinei Vasques e Marília de Alencar, estão nesse núcleo o delegado federal Fernando de Sousa Oliveira, o general da reserva Mário Fernandes, o coronel do Exército Marcelo Costa Câmara e Filipe Garcia Martins, ex-assessor especial de Bolsonaro — todos negam qualquer ilegalidade.
Na terça-feira (22/04), a Primeira Turma do STF — formada por Moraes, Flávio Dino, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin — começa a julgar se há elementos suficientes para abrir um processo criminal contra eles por cinco crimes: golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, organização criminosa armada, dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado.
A operação para barrar eleitores de Lula
Formada em direito pela Universidade de Brasília, Marília de Alencar é delegada da PF há 17 anos.
No governo Bolsonaro, foi diretora de Inteligência da Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça e Segurança Pública durante a gestão de Anderson Torres (2021-2022).
Ela era subordinada ao delegado da PF Fernando de Sousa Oliveira, também denunciado, que à época era diretor de Operações do Ministério da Justiça.
Com a derrota de Bolsonaro na eleição de 2022, Torres virou secretário de Segurança do DF e levou os dois para sua equipe: Oliveira se tornou secretário-executivo da pasta e Alencar, subsecretária de Inteligência.
Para a PGR, os três atuaram tanto no uso indevido da PRF nas eleições, quanto na omissão das forças de segurança do DF deixando de conter os bolsonaristas radicais nos ataques de 8 de janeiro.
Segundo a acusação, Marília de Alencar foi quem determinou a elaboração de um relatório mapeando as cidades em que Lula teve votação expressiva no primeiro turno para orientar a operação de blitze da PRF nessas localidades.
De acordo com depoimento à PF de Clebson Ferreira de Paula Vieira, analista de inteligência encarregado da coleta de dados, Alencar lhe solicitou relatórios com as cidades em que Lula ou Bolsonaro receberam mais de 75% dos votos, que foram produzidos com o Business Intelligence (BI), ferramenta de dados usada pela PF.
Ainda segundo ele, depois ela teria solicitado a impressão apenas dos resultados do petista, que concentrava cidades do Nordeste. Na sequência, ela teria relatado ter notado coincidência entre essas cidades e os locais da operação da PRF no segundo turno.
A PGR também aponta como provas mensagens recuperadas do celular da delegada pela PF, que haviam sido apagadas e estavam gravadas em nuvem. Parte do conteúdo recuperado estava com mensagens fora de ordem e foram reorganizadas pela investigação.
Segundo a acusação, logo após o resultado do primeiro turno, em 2 de outubro, a denunciada teria enviado a seguinte mensagem a Oliveira: “Temos que pensar na ofensiva quanto a essas pesquisas”.
Já no dia 6 de outubro, ela teria indicado a seu chefe que tudo estava “alinhado” e que já havia feito “a sua parte”.
Foi identificado pela PF também um grupo de WhatsApp intitulado “EM OFF” que era formado por ela, Oliveira e Leo Garrido Meira Salles, então coordenador-geral de Operações da Diretoria de Operações Integradas e de Inteligência do Ministério.
Em 13 de outubro de 2022, por exemplo, Alencar teria enviado mensagem no grupo afirmando que em “belford roxo [cidade do Rio de Janeiro] o prefeito é vermelho precisa reforçar pf” e “menos 25.000 votos no 9 [em referência a Lula]”.
Em seguida, diz a PGR, ela teria perguntado a Oliveira qual seria o próximo passo sobre os relatórios e teria recebido a resposta: “52 x 48 são milhoes 5 de votos para virar”, indicando que seriam necessários cinco milhões de votos para virar o resultado das eleições.

Crédito,Câmara Legislativa do Distrito Federal
Às vésperas do segundo turno das eleições, suspeitas de possível uso indevido da PF e da PRF no dia da votação levaram o deputado Paulo Teixeira (PT-SP), hoje ministro da Reforma Agrária, a entrar com uma petição no TSE, o que fez Moraes a proibir a ação da polícia rodoviária relacionada ao transporte público.
Apesar disso, centenas de ônibus forma parados no dia votação. Segundo balanço obtido na época pela BBC News Brasil, houve ao menos 619 abordagens no país, o dobro do registrado no primeiro turno. A metade delas ocorreu no Nordeste.
Na ocasião, o ex-ministro do STF e do TSE Ayres Britto destacou o ineditismo da operação à BBC News Brasil: “Nunca vi nada desse tipo no Brasil desde a redemocratização. Esse tipo de coação”.
A defesa de Alencar reconhece a produção dos relatórios de inteligência sobre as cidades com maior votação para Lula e Bolsonaro. Alega, porém, que o levantamento buscava identificar indícios de compra de votos.
A justificativa também foi dada no depoimento do ex-secretário de Operações Integradas do Ministério, Alfredo Carrijo, que ressaltou que a produção do documento foi de iniciativa da Diretoria de Inteligência, comandada por Alencar.
“Considerando isso, dentro do escopo – previsto normativamente – de seu papel de Agência Central do Subsistema de Inteligência de Segurança Pública (SISP), a Diretoria de Inteligência, antes, durante e após o pleito, alimentava um painel de business intelligence, com informações fornecidas sobre crimes eleitorais por todas as agências de inteligência das forças de segurança do Brasil, a fim de propiciar conhecimento rápido e facilmente acessível por todos os órgãos que faziam parte do SISP e também do Sistema Brasileiro de Inteligência (SISBIN), para que pudessem assessorar seus respectivos tomadores de decisão, no âmbito de suas respectivas atuações”, alega a defesa de Alencar, em manifestação ao STF contra a denúncia da PGR.
Além de negar qualquer ilegalidade na produção dos relatórios, a defesa enfatiza que Alencar não tinha qualquer autoridade sobre a PRF, não podendo ser responsabilizada pela atuação da polícia nas rodovias.
A defesa também contesta as mensagens apresentadas como prova pela PF, já que o conteúdo foi recuperado em ordem embaralhada, tendo seu sentido “inferido” pela investigação.
Seu advogado reclama ainda que não teve acesso à íntegra do material apreendido na investigação, seja nos celulares e computadores dos investigados, seja o que foi fornecido por Clebson Ferreira, analista que extraiu os dados por ordem de Alencar.
“Há, no caso, portanto, cerceamento de defesa, tendo em vista que, para que seja exercida a contento, a Defesa Técnica tem o direito de acessar a íntegra de todo o material probatório documentado, não podendo se ver restrita aos recortes trazidos pela Procuradoria-Geral da República em sua inicial”, disse também a defesa em sua manifestação.
Para o advogado Alberto Rollo, especialista em direito eleitoral, há indícios de que ação da PRF no segundo turno fugiu à normalidade.
“É obrigação da Polícia Rodoviária Federal fiscalizar todas as estradas do Brasil. A questão que a Polícia Federal apurou no inquérito foi essa concentração em um determinado local, numa determinada região, que coincidiu com lugares aonde o Lula e o PT teriam mais votos. Então, isso que chama a atenção”, diz Rollo.
“O STF vai analisar, então, se houve um aparelhamento da PRF para causar prejuízo a um candidato. Mas, agora, é apenas a decisão sobre recebimento da denúncia. Ninguém será julgado ainda.”
Na avaliação de Rollo, a justificativa da defesa sobre os relatórios parece frágil, já que não seria atribuição da Diretoria de Inteligência, comandando por Alencar, apurar sobre possível compra de votos por iniciativa própria.
“Eu entenderia a participação da Polícia Federal ou da inteligência do Ministério da Justiça depois de ter algum tipo de denúncia, depois da eleição”, ressalta o advogado.
“Por exemplo, houve denúncia de compra de voto em tal região no sul da Bahia, aí a inteligência do Ministério da Justiça pode ajudar a investigar, porque isso não é seu papel. Cabe a Polícia Federal investigar e, depois, a Justiça Eleitoral julgar quem está certo, quem está errado.”

A suposta omissão no 8 de janeiro
A PGR acusa a Secretaria de Segurança do DF, da qual fazia parte Alencar, de omissão na contenção dos ataques de 8 de janeiro de 2023.
Um dos argumentos para essa acusação é que, dias antes dos ataques, circularam entre as autoridades da secretaria informes sobre a movimentações de bolsonaristas radicais para uma manifestação violenta em Brasília. Parte desses informes foi encaminhado por Alencar, então subsecretária de Inteligência.
Na visão da PGR, o então secretário Anderson Torres, seu secretário executivo, Fernando Oliveira, e Alencar teriam deliberadamente deixado de agir para facilitar a atuação dos manifestantes radicais.
“Ressalte-se que os Relatórios de inteligência, como o Relatório n. 6/2023261, elaborado pela Subsecretaria de Inteligência da SSP/DF, já indicavam, dias antes da invasão, a ameaça de atos violentos e da invasão de prédios públicos”, diz a PGR.
“A informação crítica, contudo, permaneceu restrita ao círculo mínimo dos denunciados, não alcançando as instâncias que poderiam ter tomado providências eficazes”, prossegue a denúncia.
“Os atos omissivos não foram meramente falhas de execução, mas decisões voluntárias que impactaram diretamente a segurança e na integridade do processo democrático, a serviço dos interesses da organização criminosa com a qual estavam implicados.”
A defesa contesta a responsabilidade de Alencar em eventuais falhas das forças de segurança do DF. O argumento é que cabia a ela, como responsável pela área de inteligência, apenas manter seus superiores informados sobre a mobilização dos manifestantes e os riscos detectados. Já a decisão sobre como as forças de segurança deveriam atuar frente a essas ameaças não seria sua prerrogativa.
Para a defesa, a inocência da delegada está confirmada pela decisão do Ministério Público Federal de arquivar um inquérito que apurava sua possível omissão no 8 de janeiro.
Já um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) aberto pela PF para apurar sua conduta concluiu pela absolvição de Alencar das acusações de omissão e improbidade administrativa, afirma a manifestação da defesa ao STF.
“Realmente as atribuições do gestor de inteligência (Subsecretário de Inteligência) se volta, em regra, ao assessoramento do gestor tomador de decisão do órgão (Secretário de Segurança Pública)”, diz trecho do PAD citado pela defesa.
“Nesse aspecto, a Indiciada adotou as providências que lhe competiam, providenciando naquele mesmo dia 06.01.2023, o envio físico do citado relatório ao Secretário-Executivo/SSP/DF e, embora não tivesse a obrigação legal, à Subsecretária de Operações Integradas (SOPI/SSP/DF).”
BBC