Ele vai aceitar o resultado ou vai contestar a eleição que nem Aécio Neves (PSDB) fez em 2014?
Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vai conseguir governar com um Congresso controlado pela oposição?
As ruas vão encher de novo? Vai ter golpe?
Essas perguntas, feitas desde antes da eleição, serão agora finalmente respondidas.
Muitos têm chamado de “terceiro turno” esse momento em que a vitória de Lula pode ser questionada e seu governo, ao extremo, inviabilizado.
A conversa deixou muita gente confusa achando que poderia haver uma terceira votação em alguma situação específica. A hipótese não existe: as eleições são definidas em dois turnos no máximo, sem exceção.
Outros criticam o termo como uma tentativa de “perfumar” a ameaça de uma ruptura democrática que paira no ar nos últimos quatros anos por causa das ações e palavras de Bolsonaro.
A tudo isso se soma a incerteza sobre qual será a reação de Bolsonaro, que, desde a vitória de Lula, se mantém em silêncio a respeito.
De praxe, um pronunciamento reconhecendo a derrota seria esperado, mas no caso de Bolsonaro não se sabe ainda quando — ou se — isso ocorrerá.
Contestação do resultado
A história recente do país sugere que Lula pode enfrentar alguns problemas logo à frente. Primeiro, imediatamente após a eleição.
A expectativa é que haja algum tipo de contestação do resultado porque o presidente disse diversas vezes que não o aceitaria se achasse que houve fraude, apesar de nunca ter apresentado qualquer prova concreta de que o sistema de votação seria falho.
“Ele já está contestando. Houve a tentativa de adiar a eleição por causa das inserções em rádios”, diz o historiador e cientista político Luiz Felipe de Alencastro, professor da Fundação Getúlio Vargas, em referência ao relatório apresentado pela campanha de Bolsonaro sobre supostas irregularidades na transmissão de propaganda eleitoral e que foi rejeitado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
“Esse governo tenta criar ansiedade o tempo todo. Vai ter um período de incerteza e instabilidade”, afirma Alencastro.
A cientista política Flávia Biroli diz que Bolsonaro e os bolsonaristas não aceitarão facilmente uma derrota por considerar que o país estaria caindo nas mãos de um inimigo.
“A extrema-direita transforma adversários em inimigos e é contra a alternâcia política porque entende que, se perder a eleição, o Estado vai ser tomado”, afirma a professora da Universidade de Brasília.
“Bolsonaro anunciou durante todo o governo que não aceita as regras básicas da democracia e nutriu um movimento que tem como identidade fundamental essa recusa e o ódio a um inimigo que teria uma ajuda das instituições para agir contra o presidente. É uma conjuntura explosiva.”
Se Bolsonaro contestar o resultado, a questão é se ele faria isso à força ou pelas vias legais.
Aécio Neves foi pelo segundo caminho em 2014 com a vitória de Dilma Rousseff (PT). Ele ficou à frente na maior parte da apuração do segundo turno, dando a impressão que iria conseguir ganhar, mas o resultado virou no fim.
“Ele reconheceu a vitória de Dilma, mas depois percebeu que a posição do José Serra (PSDB) em São Paulo era mais radical e não quis perder a liderança do partido, para ser o desafiante de Dilma em 2018”, diz Alencastro.
Quatro dias após a reeleição de Dilma, o PSDB pediu para ser investigada uma suposta fraude, mas o TSE não encontrou nada.
“O precedente do Aécio é pernicioso porque a diferença na votação foi ainda menor agora, e eles podem pedir uma recontagem. Mas na eleição da Dilma não houve o apoio instantâneo de líderes de quase 50 países, entre eles os Estados Unidos, o aliado mais poderoso do Brasil. Acho que isso neutraliza essas pretensões entre os setores sociais que tiverem bom senso, e incluo aí a hirarquia das Forças Armadas”, diz Alencastro.
O problema é que Bolsonaro precisará recorrer à mesma Justiça eleitoral que ele e seus apoiadores vêm atacando sem parar ao questionar a isenção do TSE e a segurança das urnas eletrônicas e ao dizer, sem provas, que houve fraude na eleição de 2018.
Mas uma denúncia de fraude, se não tiver fundamentos ou provas, não deve dar em nada, avalia Danilo Medeiros, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
“As instituições já estão calejadas, blindadas e preparadas para isso. Bolsonaro nunca leva um plano adiante, mas ele é imprevisível. Com uma derrota apertada e Lula virando no final, algum tipo de contestação deve vir, mesmo que mais leve, genérica e vazia, apontando ‘injustiças’, como se vem falando”, diz Medeiros.
O cientista político avalia que o reconhecimento imediato da vitória de Lula por lideranças políticas que apoiam Bolsonaro limitaram suas opções e o deixaram isolado.
“Ele não esperava perder e não esperava ser abandonado tão rápido. Ficou sem apoio para uma contestação — e para um golpe mais vistoso menos ainda. Mas o silêncio constrangedor de Bolsonaro mostra sua relutância em de fato conceder a vitória. Ele pode estar esperando um pouco para ver se as manifestações dos caminhoneiros pegam fogo e qual é o ânimo das ruas”, afirma.
O reflexo da derrota entre a metade da população que votou a favor do atual presidente pode ser decisivo, avalia Medeiros: “Aécio não tinha o apoio das ruas. Os eleitores de Bolsonaro são mais mobilizados. Acho que, se os mais fiéis estiverem engajados, ele vai instigar esse grupo a permanecer nas ruas”.
Biroli não acredita que outros setores da sociedade além dos bolsonaristas apoiariam uma tentativa de golpe.
“O empresariado, que o apoiou eleitoralmente, não deve apoiar, nem o Judiciário, que é o primeiro alvo depois de uma ruptura. As empresas de mídia mais relevantes também não embarcaram em uma aventura golpista. Mas não sabemos como as polícias vão agir, especialmente as militares”, diz.
Alencastro diz que também é difícil prever qual seria o engajamento das igrejas evangélicas que apoiaram o presidente. “Não sabemos a extensão da insatisfação que a eleição do Lula vai gerar. Vamos começar a saber agora.”
Até o momento, as declarações feitas por lideranças evangélicas aliadas de Bolsonaro, como o pastor Silas Malafaia, o pastor e deputado federal Marco Feliciano (PL-SP) e o apóstolo Estevam Hernandes, não deram qualquer sinal de que eles questionam a vitória de Lula – pelo contrário.
Uma coisa que faltou a Aécio e que também pode faltar para Bolsonaro agora é apoio político. Se ele questionar a eleição, isso pode prejudicar também os governadores, senadores e deputados de partidos aliados que foram eleitos agora.
Os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-RO), já declararam que a vitória de Lula não deve ser questionada. O governador eleito de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), ex-ministro de Bolsonaro, também disse em entrevista à emissora Record, que terá uma “relação republicana” com o petista.
“O presidente e seu entorno mais radicalizado não parecem ter encontrado suporte suficiente para seguir com o questionamento das urnas, mas isso não significa que a situação esteja controlada”, avalia Biroli.
A cientista política cita as operações da Polícia Rodoviária Federal (PRF) no dia da eleição, a presença de militares nas ruas no Rio de Janeiro e as mobilizações de caminhoneiros, que fecharam estradas para protestar contra a derrota de Bolsonaro, como um indicativo de que o presidente tem apoio em determinados setores caso opte por abrir uma crise institucional.
“São sinais claros de segmentos que estão dispostos a mobilização antidemocrática, e caberia ao presidente controlar isso, mas não parece que ele pretende fazer isso. Não ter o suporte institucional não significa que o bolsonarismo não esteja ativo em relação a uma contestação do resultado. De maneira que permanece muito delicado como será a manifestação de Bolsonaro quando ele decidir fazer isso.”
O histórico de Bolsonaro também joga contra ele. O presidente já se filiou a nove partidos e aderiu de última hora ao PSL (atual União Brasil) e ao PL para disputar as duas últimas eleições.
O presidente também tentou criar sua própria legenda, mas não conseguiu. “E nem vai conseguir, porque ele não tem capacidade. Bolsonaro não controla um partido, ele controla um movimento de espírito”, diz Alencastro.
A relação com o Congresso
Outro momento de tensão para Lula pode ser a relação com o Legislativo no começo do seu governo.
O PL terá as maiores bancadas na Câmara dos Deputados e no Senado, e vários políticos bolsonaristas e à direita de Lula se elegeram, alguns deles com excelentes votações, e podem fazer oposição ao novo presidente.
A Presidência confere poder e influência, e a transição certamente vai produzir rearranjos e facilitar a costura de apoios. Mas vai ser a princípio um Congresso hostil a Lula, avalia Alencastro, e ele pode não só ter dificuldades para aprovar projetos, mas lidar com pautas-bomba e ameaças de impeachment.
“Os bolsonaristas também podem sempre tirar do colete a proposta de emenda constitucional para instaurar um semipresidencialismo”, diz.
Isso reduziria drasticamente o poder do chefe do Executivo. A proposta está tramitando na Câmara. Arthur Lira, aliado de Bolsonaro, já disse que, se aprovado, o novo regime poderia entrar em vigor em 2026 em vez de 2030 como é originalmente previsto.
“Vai ser uma ameaça a Lula no decorrer do mandato, mas é difícil de passar. É uma mudança complexa por meio de plebiscito e precisa de uma campanha longa”, diz Alencastro.
Lula também precisará negociar o chamado Orçamento Secreto, como ficaram conhecidas as emendas de relator, que foram criticadas bastante por ele na campanha. O Orçamento Secreto também foi articulado por Lira.
Mas esse é um nó complicado de desatar. Medeiros acredita que Lula não vá enfrentar o assunto “com dois pés no peito” e deve adotar uma estratégia de mudanças graduais.
“Uma parte do Legislativo sabe que foi uma forçada de barra que foi possível diante de um governo frágil, mas vai ser complicado retroceder, os parlamentares não vão aceitar”, diz.
Lula pode esperar para ver o que o Supremo Tribunal Federal (STF) vai dizer a respeito. Atual presidente da Corte, a ministra Rosa Weber é a relatora da ação que questiona a constitucionalidade das emendas por causa da sua falta de transparência.
Uma decisão contrária do STF certamente ajudaria o novo presidente na negociação com o Congresso.
A mobilização das ruas
Também é preciso aguardar para ver qual será o efeito de uma contestação do resultado da eleição a médio prazo.
Em 2014, a denúncia de fraude de Aécio fez a mobilização contra Dilma ganhar corpo, junto com o escândalo da Lava Jato. Houve grandes protestos, e a presidente sofreu um impeachment no segundo ano do mandato.
Uma nova denúncia por parte de Bolsonaro poderia ter um efeito semelhante e mobilizar milhões de brasileiros que votaram a favor dele e contra o PT.
“Vai ser um começo difícil, com mobilizações sociais, porque isso vai ativar as bases do bolsonarismo, mas não todos os eleitores de Bolsonaro”, diz Biroli.
A cientista política avalia que essa mobilização pode perder força depois que Lula assumir.
“Não acredito que metade do país vai ficar conflagrada ou que vamos ter uma repetição de 2014, porque estamos em um país diferente, em um contexto diferente. Antes, havia uma expectativa de novidade, e, agora, estamos diante de um movimento radicalizado à direita.”
Mas o antipetismo e o bolsonarismo que embalaram Bolsonaro nesta eleição não devem desaparecer com a vitória de Lula e podem fazer com que ele recue em algumas pautas, especialmente na arena mais sensível dos costumes e da moral.
Outro ponto de atenção vai ser a corrupção. “É o grande fator que mobilizou as pessoas contra o PT e o principal motivo apontado agora para não votarem no Lula”, diz Medeiros.
A corrupção fez uma grande sombra sobre Lula durante toda a campanha e deve agora, depois que ele foi eleito, continuar a ser um ponto de tensão em seu terceiro mandato.
BBC