“Ainda que não estejamos na mesma situação que passamos há um ano, está claro que a pandemia de covid-19 não acabou. Infelizmente, vemos os indicadores subirem de novo na Europa, o que sugere o início de uma nova onda de infecções.”
Esse é o primeiro parágrafo de uma declaração conjunta publicada em 12 de outubro pelos líderes do Centro de Controle e Prevenção de Doenças da Europa (ECDC) e por representantes da Organização Mundial da Saúde (OMS) neste continente.
Agora, porém, a preocupação vem em dose dupla: com a chegada do outono e, mais pra frente, do inverno no Hemisfério Norte, as autoridades da região também preveem uma temporada de alta transmissão do influenza, o vírus causador da gripe.
“A potencial cocirculação da covid-19 e da gripe colocará pessoas vulneráveis em maior risco de sofrer com doenças graves e morte, com um provável aumento da pressão sobre hospitais e profissionais de saúde, já esgotados por quase três anos na linha de frente da pandemia”, antevê o texto.
A melhor estratégia para lidar com essas ameaças, apontam as instituições, é reforçar a vacinação, especialmente dos grupos mais vulneráveis.
Mas o que revelam os números atuais da covid-19 no continente europeu? E o que eles podem representar para o Brasil e para o resto do mundo?
Em resumo, a situação exige cuidados e reforços dos imunizantes, especialmente em idosos e outros grupos mais vulneráveis. Os pesquisadores temem que a onda que se inicia no outono europeu chegue ao Brasil entre dezembro e janeiro, provocando um novo aumento nos casos e nas mortes por covid. Esse fenômeno, aliás, aconteceu em períodos anteriores.
Toda semana, a OMS divulga um relatório em que atualiza a situação da covid-19 no mundo.
A última edição do documento, publicada em 19 de outubro, mostra que a situação da Europa está instável: nas três semanas de outubro, os números de casos e mortes subiram e, depois, caíram.
Foi registrado um aumento de 8% nas infecções em 5/10, com duas quedas seguidas em 12/10 (-3%) e 19/10 (-11%).
Mesmo assim, dos cinco países que detectaram mais casos de covid-19 nos últimos sete dias, três são europeus: Alemanha (583 mil novas infecções), França (337 mil) e Itália (288 mil). Os outros dois são China (328 mil) e Estados Unidos (251 mil).
Atualmente, as nações localizadas no centro e na região Mediterrânea do continente estão entre aquelas com a maior taxa relativa de casos de covid-19 em comparação com o resto do mundo.
“Esse aumento de casos observado não só na Europa, mas também na Ásia, acende um sinal de alerta e não há menor dúvida que é algo importante”, constata o epidemiologista Paulo Petry, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
A mudança nos cenários epidemiológicos motiva, inclusive, discussões sobre a volta de certas medidas preventivas.
Com aumento de casos e até de hospitalizações, alguns Estados da Alemanha, por exemplo, avaliam a reintrodução da obrigatoriedade do uso de máscaras em lugares fechados ou o reforço das campanhas de testagem.
Segundo a Deutsche Welle, o ministro da Saúde alemão, Karl Lauterbach, considera que o país está “bem preparado para o outono e o inverno, graças às vacinas atualizadas e aos medicamentos”.
“Mesmo assim, a direção para a qual estamos caminhando não é boa”, avalia.
Para a infectologista Raquel Stucchi, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é preciso acompanhar essa onda por mais tempo para entender os efeitos que ela terá.
“A tendência, e o nosso desejo, é que ela seja menos impactante que as anteriores, até pela vacinação e a quantidade de pessoas que já tiveram a covid-19”, aponta.
“Mas será necessário conferir isso na prática para ter certeza se essas infecções vão causar hospitalizações e, infelizmente, mortes”, complementa.
Mas o que explica essa possível nova onda que começa a se formar na Europa?
Novas variantes?
O último relatório da OMS aponta que, no último mês, 98,7 mil sequências genéticas do coronavírus foram compartilhadas nas bases de dados públicas.
As análises mostram que a variante ômicron BA.5 continua a ser dominante e aparece em 78,9% das amostras.
A seguir, são observadas outras linhagens da ômicron que são “primas-irmãs”, como a BA.4 (6,7%) e a BA.2 (3,9%).
Uma nova variante que começa a chamar a atenção das autoridades é a XBB, que mescla mutações da BA.2.10.1 e da BA.2.75.
Ela já foi detectada em 26 países — e alguns trabalhos iniciais sugerem que a nova versão tem uma grande capacidade de escapar da imunidade, obtida por meio da vacinação ou de infecções prévias.
Mas é preciso ponderar que, por ora, o número de amostras da XBB é tímido: falamos aqui de pouco mais de 800 sequenciamentos genéticos dela feitos ao redor do mundo.
“Ainda que essa linhagem recombinante mostre sinais de vantagem em comparação com as variantes descendentes da ômicron, ainda não há evidências de que ela leve a uma maior gravidade da doença”, esclarece a OMS.
Com as evidências disponíveis até o momento, portanto, o aumento de casos percebidos na Europa parece ser causado pela “família” ômicron.
O virologista Fernando Spilki, professor da Universidade Feevale, do Rio Grande do Sul, explica que “ainda não foi encontrada uma nova variante” que ajude a explicar o atual cenário.
“Mas isso pode ser questão de tempo se olharmos o que está ocorrendo, especialmente em países como Alemanha”, avalia.
Ou seja: quanto mais o coronavírus circula, mais chance tem de sofrer mutações que sejam benéficas para ele. E isso, por sua vez, abre alas para variantes mais transmissíveis, agressivas ou com capacidade de driblar o sistema imune.
A situação na Europa, por ora, parece estar relacionada ao completo relaxamento das medidas restritivas — como era natural que acontecesse com a melhora da situação pandêmica.
Mas a proximidade entre as pessoas no trabalho, nos eventos e nas ocasiões sociais — que acontecem cada vez mais em lugares fechados, por causa do frio — facilita a troca de vírus respiratórios.
E isso desemboca num aumento da transmissão comunitária do patógeno, que pode gerar complicações e até matar, especialmente os indivíduos mais vulneráveis, como idosos e imunossuprimidos.
O contra-ataque
Spilki aponta que, mesmo com esse aumento de casos no início do outono no Hemisfério Norte, “atualmente não há espaço para debate sobre grandes medidas de restrição”.
Na avaliação das autoridades locais, com vacinas e remédios amplamente disponíveis no continente, parece impraticável e até desnecessário resgatar as medidas drásticas do passado, como o lockdown.
“A preocupação deveria estar em completar o calendário de vacinação daqueles que estão com doses atrasadas”, sugere o virologista.
O ECDC calcula que 72,6% dos europeus completaram o esquema inicial de imunização. Apenas 53,9% deles tomaram a terceira vacina, considerada fundamental para proteger contra as formas mais graves da infecção provocada pela variante ômicron.
Com a vacinação como a principal política pública de saúde, muitos países europeus já começaram a aplicar a quarta dose — ou a segunda dose de reforço — em parte da população.
O imunizante que está sendo oferecido nas últimas semanas traz uma novidade importante: a formulação do produto foi atualizada para proteger melhor contra as variantes mais recentes, como a ômicron BA.1.
O mesmo processo inclusive, acontece todos os anos com as vacinas contra o influenza.
“Nossa mensagem é simples: a vacinação salva vidas. Ela diminui as chances de ser infectado e o risco de sofrer com as consequências mais severas da covid e da gripe sazonal”, escrevem os representantes da OMS e da ECDC.
“Não há tempo a perder. Nós encorajamos todo mundo que for elegível, especialmente os mais vulneráveis, a tomar as doses assim que possível”, complementam.
Cada país da região adota critérios próprios para definir o público-alvo da atual campanha de vacinação contra a covid.
No Reino Unido, por exemplo, a segunda dose de reforço já está disponível para todos com mais de 50 anos, gestantes, indivíduos imunossuprimidos, cuidadores de idosos e profissionais da saúde e da assistência social.
Stucchi, que também integra a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), destaca a necessidade de educar as pessoas, para que elas entendam quando estão numa situação de risco ou se elas fazem parte daqueles grupos em que a covid-19 pode ser mais grave.
“Com isso, o indivíduo pode avaliar a situação, usar máscaras em locais fechados, tomar as doses de vacina e se isolar se estiver com algum sintoma de infecção respiratória”, propõe.
E o Brasil?
Por ora, a situação no país parece rumar para uma diminuição dos indicadores mais importantes relacionados à crise sanitária.
Desde julho, a média móvel de casos de covid está em redução e passou de 59,8 mil em 15/7 para 4,9 mil em 23/10 — uma queda proporcional de doze vezes.
Algo similar acontece com as mortes. O último pico foi registrado em fevereiro, com uma média móvel de 951 óbitos em 11/2. O número despencou para 60 em 23/10.
Os dados vêm do monitoramento feito pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde, o Conass.
Para Petry, esse platô brasileiro também deve ser visto com precaução. “Não estamos numa situação confortável. Por trás desses números, temos a vida das pessoas e o impacto às famílias”, avalia.
O momento de maior calmaria, porém, deveria ser visto como uma oportunidade para fazer o planejamento dos próximos meses, com o objetivo de manter os números nessa tendência descendente, apontam os especialistas.
“Nosso receio é que se repita o panorama de outros anos, em que a onda de casos no outono europeu se refletiu numa elevação de infecções e mortes por covid em dezembro e janeiro no Brasil”, analisa Spilki.
“Para evitar isso, precisamos observar os efeitos das vacinas atualizadas nos países que já adotaram essa estratégia e pensar na campanha de reforço por aqui para o início de 2023”, propõe o virologista.
Stucchi pondera que nem sempre os fenômenos são importados do exterior e têm o mesmo efeito no país. “A variante delta foi ruim na Europa e tínhamos medo do que ela faria quando chegasse. Mas o impacto aqui foi bem menor”, compara.
Até o momento, porém, não há nenhuma sinalização de que o tema da atualização das vacinas está sendo discutido no país.
Uma reportagem publicada pela BBC News Brasil em 22 de setembro apontou que o Ministério da Saúde não realizou reuniões públicas com especialistas sobre a estratégia vacinal para o ano que vem — e nenhuma notícia foi divulgada sobre o assunto desde então.
Os pesquisadores também chamam a atenção para a falta de medicamentos específicos para tratar a covid — alguns deles já liberados para uso no país.
No início de outubro, a SBI lançou uma nota técnica em que expressa “preocupação em relação aos processos de incorporação, indicação e distribuição de medicações já aprovadas pela Anvisa para o tratamento e prevenção da covid-19, mas que até o momento não estão disponíveis para uso no setor público”.
O documento afirma que, “apesar do número de hospitalizações e óbitos por covid-19 ter sido reduzido com o avanço da vacinação, somente em setembro 7.321 brasileiros” morreram de covid, “sendo que muitos deles poderiam se beneficiar de medicações terapêuticas ou estratégias preventivas contra a infecção”.
A instituição aponta que fármacos como o nirmatrelvir/ritonavir, o baracitinibe, o molnupiravir e o rendesivir já receberam a avaliação positiva da agência regulatória brasileira, mas não foram distribuídos na rede pública e não há clareza de quando eles podem ser prescritos na prática.
A BBC News Brasil entrou em contato com o Ministério da Saúde para solicitar um posicionamento a respeito dos pontos apresentados sobre a vacinação e os medicamentos. Não foram enviadas respostas até a publicação da reportagem.
Por fim, Spilki destaca a necessidade de “monitorar melhor os casos”.
“Precisamos trabalhar com busca ativa e fazer um rastreamento para termos o alerta precoce de uma nova onda”, diz.
“O diagnóstico e o monitoramento da covid continuam num patamar muito baixo no país”, lamenta.
Stucchi concorda e afirma que o Brasil “é um péssimo aluno”.
“A gente não aprende com os erros do passado. Ainda precisamos de um sistema de vigilância que consiga detectar com antecedência a circulação de vírus respiratórios para planejarmos as ações de saúde”, conclui.
BBC