Famílias cujos pais rompem o relacionamento com os filhos. Primos que quase trocam socos. Amigos que desfazem laços de anos e se bloqueiam nas redes sociais. Expulsões de grupos de aplicativos de mensagens por pensar diferente. A polarização política trouxe o realce do ódio nas relações sociais, sejam elas presenciais ou digitais.
Há casos em que o ódio se transforma em violência física, que pode levar à morte por divergências políticas e que recentemente deixou o país todo chocado.
Mas quais os efeitos e, sobretudo, como lidar com a canalização do ódio nas vidas real e virtual?
Há maneiras de reverter esse sentimento nefasto que, uma vez solto, parece transbordar e se espalhar rapidamente feito lava após um vulcão entrar em erupção?
Para Renato Noguera, professor de filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), é preciso entender a origem dessa emoção.
Ele argumenta que há muitas frustrações ao longo da vida, algo que é natural para cada ser humano. Isso porque os nossos desejos não podem ser realizados indefinidamente, sem nenhum tipo de princípio de realidade que os confronte.
Noguera aponta, entretanto, que o momento que nós vivemos foi politicamente organizado, por grupos que “canalizam essa frustração e criam uma identificação com essas pessoas que estão no momento de frustração”.
“Esses sentimentos — o sentimento do medo, do pavor, do pânico moral, por exemplo —, em conjunto, provocam uma relação de recusa de uma certa realidade. Tem muita fantasia em jogo, tem um grande pavor, e, diante desse medo, diante desse pavor, as pessoas querem se proteger”, reflete.
Para se proteger, prossegue o professor, nada “melhor” para essas pessoas do que delegar o governo a um tipo de figura autoritária.
“É um momento de transferência relacional, que tem a ver com o medo, e esse medo ajuda a alimentar o ódio.”
Uma maneira de explicar a questão, diz Noguera, é pela filosofia, mas não só: é recorrer à psicanálise, pois ambos os campos estão sempre em comunicação.
Há uma questão importante que está em Sigmund Freud e que aparece também em algumas tradições filosóficas alemãs, como as de Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche, por exemplo, a de que o amor e o ódio não são opostos.
“Eles fazem parte de uma mesma energia. O amor é uma relação de apego, de se ligar àquele objeto desejado, e o ódio é um sentimento de destruição daquele objeto, que parece trazer uma forma de satisfação. Então o mecanismo é um mecanismo de defesa, de ataque e de aproximação. O contrário do amor e do ódio seria muito mais a indiferença”, indica.
Marcelo Santos, psicólogo e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, concorda com o colega.
Seguindo aquela lógica de que o amor cega, o ódio também cega, argumenta.
Isso porque a rivalidade que é criada no ódio por alguém impede uma análise mais racional dos próprios comportamentos subjetivos, das ações em si — seja em uma rede social, seja na convivência do dia a dia.
“O interessante disso é que, quando estou amando, o outro se torna o objeto de desejo. E no ódio o outro também se torna um objeto de desejo, porque tudo passa a girar em torno daquilo, ou daquela pessoa. Segue a mesma construção lógica. Se a gente pensar que o julgamento que é feito está muito atrelado à objetivação do outro, aquilo passa a ser o foco do meu amor ou do meu ódio, naturalmente aquilo vai tomar conta, vai tomar uma proporção.”
Santos acredita que as plataformas de redes sociais não são o problema, e sim alguns dos seus usuários que propagam o ódio.
Em sua análise, hoje a vida está muito mais digital do que real.
As pessoas usam muito do seu tempo e da sua vida em todas as suas relações digitais. Isso acaba propiciando a exposição, segundo o psicólogo.
“Essa exposição, em que há uma mistura entre o público e o privado, acaba gerando também um incômodo: o incômodo que o outro causa em mim. Infelizmente, e já há alguns anos, a gente tem visto uma proliferação da cultura do ódio. Ou seja, o que o outro apresenta me incomoda. O outro faz uma viagem maravilhosa e me incomoda. A alegria do outro me incomoda, a conquista do outro me incomoda. [Com as redes sociais] O ódio está encontrando mais canais de exposição”, analisa.
Ele lembra da cultura do cancelamento, que usa a rede social como vetor do ódio e como ferramenta para expor pessoas no âmbito de suas vidas privadas no público, para tentar atingi-las de todas as formas e elas serem canceladas.
Renato Noguera, por sua vez, aponta que outra maneira de compreender o ódio é como se extravasa a raiva (que é uma emoção que dá limite em relação ao outro, até onde se pode ir, até onde está doendo e não dá para ir além).
“Quando a raiva não é trabalhada de uma maneira adequada, essa raiva pode se transformar em um sentimento de ódio. O ódio é um sentimento que está articulado com um desejo de destruição que impede a satisfação do próprio desejo”, diz.
O filósofo lembra que a sociedade judaico-cristã tem uma interpretação, que é religiosa, de que “devemos amar todos como a nós mesmos”. Uma interpretação do cristianismo, portanto.
O amor é uma energia bonita, mas ninguém tem capacidade de amar tantos objetos ao mesmo tempo e como a si próprio.
Quando se entra nessa fantasia, continua o professor da UFRRJ, o ódio vem como efeito colateral e previsível.
“A gente tem um limite para amar. Não precisamos amar tudo porque somos humanos, temos limites. Quando entendemos que temos limites, a gente consegue mediar essa necessidade de ódio. O ódio é um efeito necessário em uma sociedade que finge uma fantasia de que eu posso amar tudo e todos da mesma maneira e com a mesma intensidade, o que é falso. E as pessoas que tentam fazer isso vão odiar.”
Como reverter esse processo?
Noguera nota que houve um processo para se chegar até agora — e que é um processo de ordem política.
Há um campo de disputas políticas e de projeção do imaginário, argumenta. Ele lembra que o ódio não é uma ferramenta necessária: existem sociedades que se organizam sem colocar o outro como um adversário.
“Isso tem muito a ver com o maniqueísmo, com Maniqueu, aquele que influenciou Santo Agostinho em sua primeira fase, que é [como se] ‘bem’ e ‘mal’ existissem incorporados, como se fossem fixos. Esse discurso de ‘bem e mal’, ‘nós contra eles’ acaba ajudando a fomentar essa relação.”
E “qual o problema?”, questiona o especialista. “Tem um verniz político também”, prossegue. Segundo ele, algumas ideologias são pioneiras em torno de uma identificação narcísica. Ele cita o exemplo da extrema-direita, da qual muito vem se falando nos últimos anos.
“A extrema-direita é a favor de uma branquitude como norma, ela é heteronormativa. Ela opera com alguns valores que acabam criando uma necessidade de se produzir um rival para destruir. Então isso é uma concepção de sociedade, uma concepção da cultura, uma leitura cientificista de uma seleção natural. Mistura isso tudo com uma certa interpretação religiosa e acaba se criando um perfil. Então se tem uma liderança carismática que nos conduzirá a uma terra prometida, livre do mal, livre de certas pessoas que não são pessoas de ‘bem'”, reflete o filósofo.
Para reverter isso, diz Noguera, é preciso reconhecer a própria humanidade em si mesmo.
É preciso reconhecer que não é preciso amar tudo: é possível viver bem respeitando as pessoas, reconhecendo que há diferenças e que não há condições de se acolher tudo da mesma forma.
“Mas é possível manter a coexistência a partir do respeito e da responsabilidade, compartilhando as coisas, e não em uma competição desenfreada na qual ‘se a farinha é pouca, meu pirão primeiro’, devido a poucos recursos para a vida das pessoas. O que está por trás disso são, grosso modo, duas grandes concepções de sociedade e da relação que a humanidade tem com o território. Há poucos recursos, os mais fortes vão, pegam esses recursos e sobrevivem, mantêm a vida e destroem aqueles que se opõem porque não tem lugar para todo mundo. E tem uma concepção de que nós podemos dividir essas coisas e compartilhar esses recursos. Nesse sentido, algumas sociedades são mais cosmofílicas e outras mais cosmofóbicas. Isso acontece em qualquer sociedade, em qualquer cultura, tem uma coisa tanto quanto a outra.”
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